terça-feira, 23 de julho de 2013

Cátaros e Católicos numa aldeia francesa. Montaillou. 1294-1324. Emmanuel le Roy Ladurie. «Aldeia de camponeses e de pastores, situada a 1300 m de altitude, a comunidade de Montaillou não teria tido interesse particular se não tivesse sido objecto, entre 1318 e1335, de um inquérito monumental…»

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Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitações, de culturas e sociedades, o homem é também agente transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história e o da história na vida do homem?

Prefácio
«(…) Montaillou é uma pequena aldeia, hoje francesa, situada no Sul pirenaico do actual departamento de Ariège, muito perto da fronteira franco-espanhola. O departamento de Ariège corresponde ao território da diocese de Pamiers e ao antigo condado medieval de Foix, que constituía im Principado pirenaico, outrora independente: a partir dos séculos XIII e XIV, este Principado, governado pela importante família dos condes de Foix, tornara-se satélite do poderoso reino de França; as possessões francesas, por seu turno, incluíam já a grande província de Languedoc, limítrofe de Ariège.
Aldeia de camponeses e de pastores, situada a 1300 m de altitude, a comunidade de Montaillou não teria tido interesse particular se não tivesse sido objecto, entre 1318 e1335, de um inquérito monumental, extraordinariamente minucioso e exaustivo: de repente, esta modesta localidade tornou-se a aldeia europeia e mesmo mundial mais conhecida de toda a Idade Média! Este velho inquérito é obra de Jacques Fournier, futuro papa de Avinhão; em 1320 ele é bispo de Pamiers e inquisidor local. Jacques Fournier, de modo geral, é menos cruel que os seus confrades na repressão anti-herética. Mas a sua inteligência, a sua paciência e a sua atenção ao pormenor fazem dele, segundo o historiador inglês Hilton, um dos grandes inquisidores de todos os tempos.
Historicamente, Montaillou é a última aldeia que sustentou activamente, enquanto tal, a heresia cátara ou albigense. De facto, esta desaparecerá totalmente do território francês, depois de ter sido, em 1318-1324, definitivamente extirpada de Montaillou, graças aos bons ofícios de Jacques Fournier. Esta aldeia é portanto a ave rara que os historiadores de bom grado procuram e que, em geral, só muito raramente encontram! Ela é o último testemunho vivo, e bem vivo em 1320, de uma formação cultural e religiosa votada a partir de então ao mais completo desaparecimento!
A heresia cátara merece por si mesma algumas explicações. O catarismo é uma das principais heresias medievais: manifestou-se nos séculos XII e XIII Languedoc, actual sul de França, na Itália do Norte, e sob formas um pouco diferentes nos Balcãs. O catarismo formou-se talvez a partir de longínquas influências orientais, maniqueístas nomeadamente…

Da Inquisição (maldita ) à Etnografia
Para quem quiser conhecer o camponês das sociedades antigas e muito antigas, não falam as grandes sínteses - regionais, nacionais, ocidentais: penso nos trabalhos de Goubert, Poitrineau, Fourquin, Fossier, Duby, Bloch… O que falta, por vezes, é o olhar directo: o testemunho, sem intermediário, que o camponês dá de si próprio. Esse olhar, para o período posterior a 1500, fui buscá-lo a memorialistas que saíram, um, da nobreza campesina mais depauperada; outro, da camada mais alfabetizada dos lavradores ricos: o senhor de Gouberville, por volta de 1550, Nicolas Rétif da La Bretonne, dois séculos mais tarde, convidaram-me a observar de perto, na sua companhia, esse mundo que nós perdemos, onde viviam os camponeses dos chamados bons velhos tempos. Era para mim tentador aprofundar a investigação e procurar outros dossiers deste tipo, mais preciosos e ainda mais introspectivos, sobre os camponeses de carne e osso. Por sorte para nós, e azar para eles, um homem, no século XIV do surto demográfico, deu voz aos aldeões, e mesmo a toda uma aldeia como tal.
Trata-se, neste caso, de uma localidade da Occitânia do Sul; mas é bem sabido, dado que esta investigação é de história agrária francesa, que a Occitânia, quer queira quer não, fará parte do hexágono, e muito rapidamente... O homem em questão, é Jacques Fournier, bispo de Pamiers de 1317 a 1326. Este prelado lúcido, devorado por um zelo inquisitorial, pertence às novas elites occitânicas, que vão dominar o papado de Avinhão. Será papa em Comtat, mais tarde, com o nome de Bento XII. Não é apenas célebre pelos seus vigorosos contributos para a teoria da visão beatífica. Etnógrafo e esbirro, soube ouvir durante o seu episcopado, os camponeses do condado de Foix, e sobretudo da alta Ariège; fazia-os engolir o pão da dor e a água das tribulações; mas torturava-os pouco; interrogava-os com minúcia e durante largo tempo, a fim de detectar entre eles a heresia cátara ou, simplesmente, um desvio em relação ao catolicismo oficial. Esta escuta chegou até nós no volumoso manuscrito latino que Jean Duvernoy publicou recentemente em edição integral. Assim foi posto à disposição dos historiadores e do público latinista, este testemunho da terra occitânica sobre si própria; testemunho que ultrapassa em muito o estrito domínio das perseguições por heresia, dentro do qual Jacques Fournier teria podido normalmente confinar-se, se se tivesse limitado a seguir a sua vocação de inquisidor. Para além das perseguições ant-cátaras, os três volumes publicados por J. Duvernoy interessam, com efeito, às questões da vida material, da sociedade, da família e da cultura camponesa. Encontramos nos textos assim recolhidos uma dose de pormenores e de aspectos da vida corrente que se procuraria em vão nos forais ou mesmo na documentação notarial».

In Emmanuel le Roy Ladurie, Montaillou, village occitan de 1294 à 1324, Editions Gallimard, 1975, Montaillou, Cátaros e Católicos numa aldeia francesa. 1294-1324, Edições 70, Lisboa.

Cortesia de Edições 70/JDACT