quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Celta. Joana D’Arc. Leon Denis. «O seu ponto de vista é o dos materialistas: Não cabe a nós, diz, que consideramos o génio uma neurose, censurar Joana por ter objectivado em santas as vozes da sua própria consciência…»

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«Nunca a memória de dona Joana D’Arc foi objecto de controvérsias tão ardentes, tão apaixonadas, como as que, desde há alguns anos, se vêm levantando em torno dessa grande figura do passado. Enquanto de um lado, exaltando-a sobremaneira, procuram monopolizá-la e encerrar-lhe a personalidade no paraíso católico, de outro, de forma brutal com Thalamas e Henri Bérenger, ou hábil e erudita, servida por um talento sem par, com Anatole France, esforçam-se por amesquinhar-lhe o prestígio e reduzir-lhe a missão às proporções de um simples facto episódico. Onde encontra Reims a verdade sobre o papel de dona Joana D’Arc na história? A nosso ver, nem nos devaneios místicos dos crentes, nem tampouco nos argumentos terra-a-terra dos críticos positivistas. Nem estes, nem aqueles parecem possuir o fio condutor, capaz de guiar-nos por entre os factos que compõem a trama de tão extraordinária existência. Para penetrar o mistério de dona Joana D’Arc, afigura-se-nos necessário estudar, praticar longamente as ciências psíquicas, sondar as profundezas do mundo invisível, oceano de vida que nos envolve, onde emergimos todos ao nascer e onde mergulha Reims pela morte. Como poderiam compreender dona Joana escritores cujo pensamento jamais se elevou acima do âmbito das contingências terrenas, do horizonte estreito do mundo inferior e material, e que nunca consideraram as perspectivas do Além? De há cinquenta anos a esta parre, um conjunto de factos, de manifestações, de descobertas, projecta uma nova luz sobre os amplos aspectos da vida, pressentidos desde a aurora dos tempos, mas sobre os quais apenas tínhamos até aqui dados vagos e incertos. Graças a uma observação atenta, a uma experimentação metódica dos fenómenos psíquicos, foi-se construindo, pouco a pouco, uma vasta e poderosa ciência.
O Universo aparece-nos como um reservatório de forças desconhecidas, de energias incalculáveis. Um infinito vertiginoso abre-se-nos ao pensamento, infinito de realidades, de formas, de potências vitais, que nos escapavam aos sentidos. Algumas manifestações dessas forças já puderam ser medidas com grande precisão, por meio de aparelhos registadores. A noção do sobrenatural esboroa-se; mas a natureza imensa vê os limites dos seus domínios recuarem sem cessar, enquanto se revela a possibilidade de uma vida orgânica invisível, mais rica, mais intensa do que a dos humanos, regida por majestosas leis, vida que, em muitos casos, se mistura com a nossa e a influencia para o bem ou para o mal. A maior parte dos fenómenos do passado, afirmados em nome da fé, negados em nome da razão, podem doravante receber explicação lógica, científica. Estão nessa ordem os factos extraordinários que matizam a existência da Virgem de Orleães. Só o estudo de tais factos, facilitado pelo conhecimento de fenómenos idênticos, observados, classificados, registados nos nossos dias, pode explicar-nos a natureza e a intervenção das forças que nela e em torno dela actuavam, orientando-lhe a vida para um nobre objectivo. Os historiadores do século XIX, Michelet, Wallon, Quicherat, Henri Martin, Siméon, Luce, Joseph Fabre, Vallet de Viriville, Lanéry d'Arc, foram unânimes em exaltar dona Joana, em considerá-la uma heroína de génio, uma espécie de messias nacional.
Somente no século XX é que a nota crítica se fez ouvir, e por vezes de forma violenta. Thalamas, professor substituto da Universidade, na sua obra Jeanne d’Arc: l’histoire et la légende nunca sai dos limites de uma crítica honesta e cortês. O seu ponto de vista é o dos materialistas: Não cabe a nós, diz, que consideramos o génio uma neurose, censurar Joana por ter objectivado em santas as vozes da sua própria consciência. Todavia, nas conferências que fez em França, foi geralmente mais incisivo. Em Tours,  a 29 de Abril de 1905, falando sob os auspícios da Liga do Ensino, recordava a opinião do professor Robin, de Cempuis, um dos seus mestres, segundo o qual dona Joana nunca existira, e a sua história não passava de um mito. Thalamas, talvez um tanto constrangido, reconhece a realidade da vida de dona Joana, mas arremete contra as fontes em que os seus panegiristas beberam. Engendra amesquinhar-lhe o papel, sem descer ao ponto de injuriá-la. Segundo ele, dona Joana pouco ou nada teria feito, pelo que caberia aos habitantes de Orleães todo o mérito de se terem libertado. Henri Bérenger e outros escritores abundaram em apreciações análogas e o próprio ensino oficial como que se impregnou, até certo ponto, dessas opiniões. Nos manuais das escolas primárias, eliminaram da história de dona Joana toda a componente espiritualista. Neles já não se alude às suas vozes; é sempre a voz da sua consciência que a guia. É notória a diferença». In Léon Denis, Joana D’Arc, A Celta, A missão histórica da heroína, as suas visões e espiritualidade, tradução de Eduardo Amarante, projecto Apeiron, Zéfiro, 2010, ISBN 978-989-677-023-5.

Cortesia de Zéfiro/JDACT