Resumo:
«Tradição
e mito são simultaneamente dois temas fundamentais do horizonte
antropológico e dois pilares de suporte da estrutura do pensamento de Dalila
Pereira Costa. O mito é uma forma de ler a realidade. Se em Dalila
Pereira Costa encontramos esta visão hermenêutica, é também evidente que o mito
aparece como o motor da acção dos povos e da regeneração das culturas. O
esbatimento dos mitos leva à perca da alma das culturas. O povo que não tem os
seus mitos tende para a inanidade. Por seu lado, a tradição de uma pátria ganha
inteligibilidade quando vertida nos seus símbolos, nos seus símbolos tradicionais. Estes não são
coisa morta, elementos de um conhecimento erudito ou arqueológico, passado, mas
bem pelo contrário, como afirma Dalila Pereira Costa».
«Mito é um conceito complexo e
difícil, pois tanto pode velar como desvendar a realidade. Neste sentido, dados
os seus tão diversos níveis de significação, se pode entender a expressão de Fernando
Pessoa: O mito é o nada que é tudo. Se na sua primeira acepção, o mito
é um relato fabuloso de conteúdo religioso, que depois apareceu a significar a
representação, de estrutura imaginativa, com a apreensão de valores, a noção de
mito passou além do domínio religioso, sendo então o relato imaginário que tem
o valor de símbolo. Neste aspecto, afastado já do seu sentido primitivo, o mito
ganhou o significado de projecção no futuro da realização de um ideal,
aproximando-se, aqui, do conceito de utopia. A tradição, descoberta pela hermenêutica para o campo
filosófico, é o elemento constitutivo da historicidade e da compreensão do
homem. O homem não pode sair da História para a poder pensar, estando, pois,
condicionado por ela. Ou seja, o homem não tem conhecimento de si, da
natureza e da História, sem mergulhar na tradição. No entanto, se a
tradição é condição de conhecimento que lhe abre novas perspectivas, se for
encarada como via absoluta pode paralisar o pensamento. Assim, a tradição, só
quando portadora de passado e de futuro, é capaz de abrir horizontes novos de
compreensão e de possibilidade.
Quanto a
nós, tradição e mito são
simultaneamente dois temas fundamentais do horizonte antropológico e dois
pilares de suporte da estrutura do pensamento de Dalila Pereira da Costa.
Neste findar de século (XX), de ligação tão íntima com a última metade do
anterior-, em que a mentalidade positivo-cientificista parece querer alimentar
o devir apenas no aqui e agora, é importante que se mantenha viva
a chama do saber não positivista que, apesar de obnubilado por saberes ostentatórios, ainda permanece,
afinal, como a estrela que indica o norte. Grande limitação a da cultura
presente, que faz tábua-rasa dos mistérios e que quer fazer crer que fora dos
trilhos do logismo racionalista e do experimentalismo não há caminhos de
verdade. Já António Quadros deixara anotado que o conjunto da obra de Dalila
Pereira Costa inclui por um lado, o
domínio ou a vertente de uma literatura puramente visionária e mística, por
outro, o de uma hermenêutica especialmente empenhada na sondagem e decifração
de símbolos, de mitos, de textos sagrados, de uma poesia e de uma novelística
onde haja predomínio do elemento transcendental sobre os elementos positivos e
sociológicos. É também assim que nós vemos o pensamento da nossa escritora:
todo ele repassado pelo brilho dos mitos, em que a tradição é sondada como
caminho de verdade e as dimensões de imortalidade e eternidade sempre aparecem
no horizonte.
O mito é uma forma
de ler a realidade.
Se em Dalila Pereira Costa encontramos esta visão hermenêutica, é também
evidente que o mito aparece como o motor da acção dos povos e da regeneração
das culturas. O esbatimento dos mitos leva à perca da alma das culturas. O povo
que não tem os seus mitos tende para a inanidade. Tal seria o efeito do
positivismo do século XIX, que intentou desmoronar as visões míticas e destruir
todos os heróis. É numa linha contrária a esta tendência alastrante que vemos
irradiar o pensamento de Dalila Pereira Costa. Veja-se especialmente a sua obra
Da Serpente Imaculada (1984), impregnada pela força de
figuras míticas como Anas, Tagus, Atégina, Endovélico, Minius. Neste seu
estudo faz-se também a análise dos dois mitos propulsores da expansão
portuguesa: a missão e a saudade, ligados respectivamente às acções da cruzada
e da emigração. Perante os desmandos imediatos à implantação da República,
passados meia dúzia de dias, escrevia sensatamente Sampaio Bruno que era
necessário e indispensável o respeito pela grande lei da continuidade
histórica: A lei da continuidade
histórica, dizia, reside em que as transformações racionalistas contem com o
factor da realidade da tradição, de modo que se não suponha possível um
princípio na efectividade social só porque ele seja exacto e justo na esfera da
especulação pura. No mesmo sentido vai o pensamento de Dalila Pereira
Costa. As transformações requerem filiação, que só na tradição encontram a força de futuro, ao mesmo tempo que
aquela é fonte de sobrevivência e progresso de uma nação.
A tradição
de uma pátria ganha inteligibilidade quando vertida nos seus símbolos, nos seus
símbolos tradicionais. Estes não são
coisa morta, elementos de um conhecimento erudito ou arqueológico, passado,
mas, bem pelo contrário, diz Dalila, elementos vivos e eternos, capazes de eternamente serem conhecidos e
usados por uma comunidade na sua vida completa: no pensamento e na acção, como
elementos de integração. Os símbolos são a expressão visível, com força de
acção, da tradição como espelho de um passado útil e utilizável. A tradição é a
grande fonte onde a pátria deve beber a sua força fecundante de
desenvolvimento, e nela criará novos ciclos ou formas de vida, de futuro.
Enfim, na tradição reside a única força
possível de futuro. Como refere Dalila, os arquétipos fundamentais, que
sempre conduzem uma pátria, são como que as suas sementes que geram, estruturam
e dão coesão à sua cultura. E, numa visão arquetípica, tradição e mito são a mesma
realidade sob a mesma cor esbatida em tons diferentes: a tradição requer o mito
e o mito exige a tradição. Daí que, para concluir, tomemos o apelo
intemporal, e ao mesmo tempo tão oportuno neste findar de milénio (XX), de
Dalila Pereira Costa: Agora e aqui, na
pátria portuguesa, urgiria realizar o gesto repetido do alquimista, o que nada
descobre de novo, mas tão-somente vê de novo um segredo transmitido numa
tradição, através dos símbolos». In Manuel Gama, Mito e Tradição em Dalila Pereira Costa, Colóquio Dalila Pereira Costa e as Raízes Matriciais
da Pátria, Porto, Maio, Departamento de Filosofia, Instituto de Letras e
Ciências Humanas, Universidade do Minho,1996.
Cortesia da UMinho/JDACT