segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Sesmarias no Império Atlântico Português. Miguel J. Rodrigues. «… a que se comece por uma breve análise da historiografia disponível, que terá, naturalmente, como ponto de partida o livro sempre citado, mas nem sempre devidamente utilizado: Sesmarias medievais portuguesas»

Cortesia de wikipedia

«Tornou-se um lugar comum distinguir entre as sesmarias no reino e as sesmarias no império. As primeiras, assimiladas à dada de terras em pequena quantidade, destinadas portanto  a facultá-las aos cultivadores directos e, nas segundas, constatando-se já doações em  quantidades tais que pressupunham obrigatoriamente a utilização de mão de obra de terceiros. Assim, a primeira tarefa que se impõe na abordagem deste tema é, necessariamente, a da clarificação do conceito e, nomeadamente, averiguar se existem ou não duas práticas diferenciadas de doação em sesmaria. Esta necessidade obriga, pois, a que se comece por uma breve análise da historiografia disponível, que terá, naturalmente, como ponto de partida o livro sempre citado, mas nem sempre devidamente utilizado: Sesmarias medievais portuguesas. Logo nos três primeiros capítulos, Virgínia Rau procura contextualizar, na longa duração e no quadro específico dos séculos XIV-XV, a prática de doações em sesmaria, assinalando desde logo a sua presença tanto em terras concelhias, como em reguengos e terras senhoriais. No terceiro capítulo indica ainda que os sesmeiros concelhios são, eles próprios, por vezes, de nomeação régia. Destaca ainda que nas terras senhoriais ... o rei delegava nos donatários não só a doação das sesmarias como a nomeação do sesmeiro. Ainda num quadro de caracterização prévia das terras dadas em sesmaria quanto à sua extensão, refere numerosos casos de doações de pequenas parcelas, que se enquadram no sentido habitualmente atribuído a esta prática, mas também doações territorialmente muito vastas, como as do paul de Trava, doado a Fernando de Castro em 1432, e do paul do Boquilobo, doado ao infante Henrique, de cuja casa Fernando de Castro era governador. Mas, mais  importantes que estas doações de extensão significativa a alguns grandes, parece-me o facto de estes reclamarem e obterem para si o direito de doar terras em sesmaria, como será o caso do infante Henrique, enquanto regedor do Mestrado de Cristo, do infante João, enquanto regedor do Mestrado de Santiago, assim como do Prior do Hospital e dos Abades dos Mosteiros de Alcobaça e de Santa Cruz, entre outros.
A conclusão a que Virgínia Rau chega, é tão significativa que merece ser citada in extenso: À sombra das sesmarias também o povo miúdo aproveitava para granjear o seu pedaço de terra. Em sentido próximo, surge a constatação feita mais adiante, de que se a razão que presidia à dada de terras em sesmaria levava a aligeirar os encargos do agricultor, não convinha ao rei libertar por completo da sua alçada jurídica e tributária os indivíduos a quem os bens assim eram dados. O raciocínio é, aliás, imediatamente alargado aos grandes em geral e às Ordens Militares e Mosteiros em particular. Tudo isto quanto à extensão, tudo parecendo deixar bem claro que no reino e nos séculos XIV-XV não se trata propriamente de uma redistribuição de terras, de uma reforma agrária avant la lettre. Entretanto, outro aspecto central das sesmarias é o da existência ou inexistência de tributos a pagar pelo produtor, onde são numerosos os exemplos de terras que ficam isentas, como de outras que cumprem um conjunto de tributos que não podem deixar de considerar-se pesados. Deve ainda merecer particular atenção o capítulo 11, onde é analisada a reacção da nobreza. Da sua conclusão, reafirma-se a ideia de que não nos encontramos face a uma lei agrária tendente somente a chamar à produtividade fromentária as glebas incultas e desaproveitadas, mas que se trata, sim, de um violento recurso para aumentar os proventos do erário régio e, consequentemente, da nação.
Ao longo do seu trabalho a autora procede com todas as cautelas e faz um levantamento tendencialmente exaustivo do problema. Mas o livro é publicado em 1945, logo escrito nos anos imediatamente anteriores, e nesta indiferenciação dos interesses do erário régio e do benefício da nação, provavelmente inevitável à data, surge talvez um fértil campo para a subalternização do interesse nobre nas sesmarias e a sobrevalorização dos interesses populares, ambos fundidos numa amálgama chamada Nação, onde naturalmente confluem interesses contraditórios.  De qualquer modo uma situação clara: as sesmarias, tal como a restante legislação fernandina de compulsão ao trabalho, vão ser aproveitadas, sobretudo, a favor dos terra-tenentes e mesmo dos grandes senhores detentores de direitos banais, sem que isso exclua alguns benefícios para sectores populares. Não se trata, portanto, de uma medida unidireccional, nem como tal deve ser analisada, mas de um conjunto de medidas aplicadas primeiro no reino e, num segundo momento, alargadas a todo o império atlântico, sempre com o objectivo de consolidar o sistema e fixar populações. O primeiro ponto de construção do império atlântico será o arquipélago da Madeira, para o qual dispomos de uma ampla documentação e de um satisfatório conjunto de estudos, incluindo-se, entre os primeiros, um fragmento de uma carta do monarca João I, que coloca o problema da dada de terras com uma grande clareza, definindo explicitamente duas categorias a quem a terra será distribuída diferentemente. Em primeiro lugar, os de maior e que possanças tiverem, que recebem a terra forra e sem pensão alguma, e sem que fique explicitado qualquer limite quantitativo». In Miguel Jasmins Rodrigues, Sesmarias no Império atlântico português, Instituto de Investigação Científica Tropical, Departamento de Ciências Humanas, Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, Comunicações, Wikipédia.

Cortesia de Wikipédia/JDACT