sábado, 17 de janeiro de 2015

O Segundo Livro de Visões de Cataldo Sículo. Helena C. Toipa. «Era de dezaseis anos e casado de octo meses perfecto entre os mudanos muy quisto dos castelhanos descanso dos portugueses hua triste terça feira correndo hua carreira em hum cavallo cahio nunca falou…»

Cortesia de wikipedia

Uma introdução à sua leitura
«(…) Não nos ficaram, nas crónicas, referências muito detalhadas ao príncipe, apenas adolescente quando morreu, à sua cultura ou à sua personalidade. Conhecemos, isso sim, as descrições necessariamente elogiosas dos poetas, nomeadamente de Cataldo. Leia-se esta passagem da Oração proferida por Cataldo à chegada da Princesa Isabel a Portugal, diante da porta da cidade de Évora: Se observardes nele a elegância do corpo, a forca e a hábil disposição para todas as práticas honestas, com verdade e segurança direis que apenas na criação deste príncipe esgotou a natureza toda a sua força. De grande estatura, aparência viril, olhos vivos, cabelo louro, de cor branca com um rubor muito a propósito. (...) E quanto aos seus costumes, talento, afabilidade, modéstia, piedade, liberalidade e demais dotes do espírito, nunca, segundo o parecer dos homens sábios, nem nos nossos tempos nem nos antigos se viu, ouviu ou leu, nos livros de quaisquer autores, alguém que o excedesse. É nele tão grande a ponderação, que tudo quanto diz e faz não parece ter origem num rapaz de quinze anos, mas num idoso Catão.
Chegados à idade aprazada, os príncipes casaram, por palavras de presente, no meio de grandes festejos e alegria geral. Os preparativos para as celebrações e as próprias celebrações prolongaram-se por longos meses e não foram muito afectadas pela morte da infanta dona Joana, irmã do rei João II. Durava ainda o clima festivo quando, em 12 de Julho de 1491, se deu, nas margens do Tejo, na ribeira do Alfange, perto de Santarém, o trágico acidente que vitimaria o príncipe. Com ele morreram, então, na cabana de um pobre pescador, os sonhos de uma Península politicamente unificada e pacificada, governada pelos herdeiros das suas duas maiores casas reais: a de Portugal e a de Castela/Aragão. Considerando a alegria que se viveu, por largos meses, em Portugal, com este casamento; os preparativos faustosos para os festejos: os divertimentos ininterruptos; os lautos jantares; a participação de toda a nobreza portuguesa, de artistas e de artesãos; a felicidade dos príncipes, na flor da idade, saudáveis e com um auspicioso futuro; considerando, enfim, tanta esperança e júbilo, perante a morte repentina de Afonso, bem poderíamos dizer como Faria Sousa … por cierto que quien ocho meses antes le uviera visto gozar de los mayores triunfos, regalos, y regozijos, y agora le pudiera ver tendido sobre un poco de heno, en la miserable cavana de um pescador, no tendria que pidir para componerse mayor espejo à la fortuna.
No Segundo livro de Visões, Cataldo reflecte também sobre esta contingência da existência humana, tentando justificá-la á luz dos conceitos cristãos. A morte do príncipe provocou a consternação geral e reflectiu-se na literatura. Com efeito, muitos poetas a lamentaram, em versos de tom elegíaco. Salientemos, apenas, três composições do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: Trovas de Álvaro Britto, à morte do principe Dom Afonso, que Deos tem; De Dom Joâ Manuel ha morte do Prinçepe Dom Affonso, que Deos tem, em modo de lamentaçam e De Luys Anrryquez aa morte do Prinçepe Dom Affonso, que Deos tem. O mesmo Garcia de Resende alude, na sua Miscelânea, ao trágico acontecimento:

«Era de dezaseis annos
e casado de octo meses
perfecto entre os mudanos
muy quisto dos castelhanos
descanso dos portugueses
hua triste terça feira
correndo hua carreira
em hum cavallo cahio
nunca fallou nem bolio
e morreo desta maneira»

Cataldo, além dos muitos epitáfios que lhe dedicou, escreveu também obras de maior fôlego, como o Segundo livro de Visões ou o De Obi tu Principis Alphonsi, em quatro livros. Neste Segundo livro de Visões. Cataldo recorre ao artifício poético de uma fantástica visita/aparição do espírito de Afonso a sua mãe. No decurso desta e de posteriores visitas, o príncipe, e, através dele, o poeta, entrega-se a profundas e extensas considerações sobre a vida e a morte do homem, em geral. O texto faz supor um tom elegíaco, mas a sua finalidade não é lamentar ou chorar desesperadamente aquele que morreu; é, antes, consolar os que ainda vivem e libertá-los do sofrimento: Muitas vezes desejei eu renunciar à companhia dos santos e demandar os reinos paternos, vindo do mais alto do céu, para te consolar, minha triste mãe, para te libertar do luto e para te fazer abandonar esse jeito de tristeza. Na verdade, o príncipe passara para um mundo melhor, completamente diferente da terra, onde gozava da companhia dos anjos e de Deus, calcorreando os caminhos celestes: Choraste-me como se eu estivesse privado do dom da vida, enquanto eu vivia entre os céus e os coros gloriosos. Esta ideia, marcada pelas concepções cristãs da morte, transforma o carácter negativo desta em possibilidade de ascender a uma nova vida mais feliz, em salvação e em glória. A vida sobre a terra toma, agora, o carácter negativo: ... mostrarei que todas as coisas estão repletas de medo sem sentido e que nada há de agradável para os que levam uma vida vazia». In Helena Costa Toipa, O Segundo Livro de Visões de Cataldo Sículo, Uma introdução à sua leitura, Universidade Católica, Centro de Viseu, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT