sábado, 17 de janeiro de 2015

Camila. A Virgem Guerreira. João Nunes Torrão. «Assim fala a donzela e, com a rapidez da chama, ultrapassa, com os seus pés alados, o cavalo na corrida, enfrenta-o, segurando-o pelo freio e vinga-se em sangue que lhe é odioso: assim também, e com a mesma facilidade, o falcão, ave sagrada…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas se, a nível individual, o comportamento de Camila é de molde a ofuscar as tropas inimigas e a contagiar o comportamento das mulheres da cidade, ainda que fique obscurecido pela desatenção que a jovem manifesta aos perigos que a rodeiam, a actuação no comando das tropas que lhe estão confiadas aparece manchada por zonas de penumbra. De facto, a posição de Camila como comandante de tropas só é brilhante na sua fachada, lembremos o final do canto sétimo e a sua apresentação a Turno, porque a realidade é bem diferente: a jovem rainha dá mostras de alguma pressa e até de certa inconsciência (e assim paga o preço da sua ousadia). Ainda na apresentação a Turno, quando se oferece para, sozinha, defrontar o exército de Eneias, demonstra a sua precipitação, além de mostrar alguma presunção e certa agressividade. Na verdade, ela não possuía um conhecimento suficientemente amplo da situação militar para empreender sem risco tal iniciativa, e só depois Turno lhe expõe as posições dos Troianos e o seu (bom) plano para os defrontar. Além disso, a confiança que manifesta em si própria e a atitude quase agressiva que assume para com Turno, ao pôr-se em pé de igualdade com ele e a quase se arvorar em chefe supremo, não deixam de manifestar uma certa presunção: Me sine prima manu temptare pericula belli, tu pedes ad muros subsiste et moenia setua (Deixa-me enfrentar com o meu braço os primeiros perigos da guerra; tu, com a infantaria, fica junto dos muros e defende a cidade). Como já vimos, Turno não aceita esta posição e expõe o seu plano que se apresentava bem estruturado (na estratégia defendida nota-se um nítido contraste entre os dois comandantes; Turno, como personagem da noite, prepara uma emboscada; Camila pretende uma missão mais perigosa, mas também mais clara: enfrentar o inimigo em campo aberto); mas, para resultar, necessitava também de bons executantes. Ora, nem Camila, como comandante das forças que defendiam a cidade, nem Turno, como general das tropas emboscadas nas montanhas, estão completamente à altura das circunstâncias.
Camila, nomeadamente, revela que não tem grande capacidade de chefia, pois dá mostras de grande inconsciência e de alguma precipitação: inconsciência, quando, caeca, persegue Cloreu por todo o campo de batalha, indiferente a tudo o resto, mostrando assim que está mais preocupada com a satisfação do seu desejo feminino de despojos, femineo praedae et spoliorum ardebat amore, do que com as tropas que devia comandar; precipitação, quando, prestes a expirar, envia uma mensagem cheia de alarmismo a Turno e lhe pede que abandone a sua posição, extremamente favorável, para vir defender a cidade. Turno, por seu lado, também não está isento de culpas, pois, após ter elaborado um bom plano, não se atreve a concretizá-lo, e dá ouvidos a uma mensagem alarmante que o leva a abandonar imediatamente a emboscada que tinha preparado. Poderemos, pois, dizer, que é a inaptidão de Camila para a chefia de tropas que vai dar início ao processo moroso da derrota de Turno, pois este abandona a única posição onde lhe era possível vencer Eneias, aliando o efeito de surpresa com a configuração favorável do terreno, para lhe vir dar luta numa situação de aparente igualdade.
Mas a penumbra atinge outras zonas da caracterização de Camila. De facto, apesar de mulher, não estava habituada aos tradicionais lavores femininos: as suas mãos femininas não estavam habituadas à roca nem aos cestos de Minerva, e, talvez por isso, se tenha dedicado em demasia aos duros combates, sendo perseguida por um destino precoce. Ora, apesar da sua ardente dedicação à arte guerreira, aparece a combater com alguma ingenuidade, deixa-se ludibriar pelo filho de Auno e corre despreocupada pelo campo de batalha, como se o único inimigo existente fosse Cloreu. Esta sua paixão ardente pelos combates faz com que o combate lhe dê prazer e assim, no meio da carnificina, o seu coração exulta de alegria: Mas, eis que, no meio do massacre, surge uma Amazona, com um dos seios a descoberto para melhor combater: é Camila, de aljava ao ombro. Este prazer, que a leva ao combate e a matar os inimigos, faz com que ela pratique uma autêntica chacina e demonstre toda a sua violência e rusticidade. Ora, esta chacina, a outros olhos que não os de Virgílio, seria apenas um motivo de glória militar, mas, para o Mantuano, é também uma oportunidade para a caracterização negativa de Camila. É que a jovem rainha não se contenta com as mortes, e, perante os vencidos, já caídos por terra, assume uma atitude de desprezo e mesmo de insulto cruel: Julgaste, Tirreno, que andavas nos bosques a perseguir feras? Chegou o dia em que armas de mulher deviam refutar as tuas palavras. Contudo, é uma glória não insignificante que irás referir aos Manes dos teus antepassados; a de teres caído sob o ferro de Camila.'
Daí que Virgílio deixe transparecer esta crueldade ao longo da narrativa. Ela torna-se visível na adjectivação usada, nomeadamente no início da descrição do morticínio: Quem é o primeiro, quem é o último, virgem cruel, que tu derrubas com o teu dardo ? e também a meio, para traduzir a reacção da jovem à enganosa proposta do filho de Auno para combaterem, a pé: mas ela, em fúria e acesa de mordente despeito. Mas é com o símile do falcão e da pomba, que põe termo a este catálogo de mortes, que a crueldade de Camila é confirmada e acentuada: Assim fala a donzela e, com a rapidez da chama, ultrapassa, com os seus pés alados, o cavalo na corrida, enfrenta-o, segurando-o pelo freio e vinga-se em sangue que lhe é odioso: assim também, e com a mesma facilidade, o falcão, ave sagrada, descendo a voar do alto de um rochedo, apanha uma pomba numa nuvem, empoleirada lá nas alturas, e, mantendo-a presa, lhe rasga as entranhas com as garras aduncas ; e eis que das alturas tomba o sangue e as penas arrancadas. Mas a sombra final, e a mais negra, acaba por ser a sua sede de despojos ricos e vistosos. De facto, é esta sede que a leva a expor-se, de maneira desmedida, aos perigos que a espreitam e lhe traz a escuridão da morte; é esta sede que traz a desordem às hostes itálicas e que dá início às movimentações que vão desembocar no duelo entre Eneias e Turno e na morte do paladino do Lácio». In João Manuel Nunes Torrão, Camila, A Virgem Guerreira, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT