«Em 147 a.C., alguns
milhares de guerreiros lusitanos encontram-se cercados pelas tropas do pretor Caio
Vetílio. Em princípio, trata-se apenas de um episódio da guerra que a República
romana trava há vários anos para se apoderar da Península Ibérica. Mas os
lusitanos, acossados pelo inimigo, elegem um dos seus e entregam-lhe o comando
supremo. Este homem, que durante sete anos vai ser o pesadelo dos romanos levou
à revolta grande parte dos povos ibéricos e foi responsável pelo início da
célebre guerra da Numância. Viriato foi um verdadeiro génio
militar, político e diplomata. Mas, sobretudo, Viriato foi o defensor de um
mundo que morria asfixiado pelo poderio romano: o mundo em que mergulham as
raízes mais profundas de Portugal e de Espanha. É este mundo, já em declínio,
que este livro tenta evocar».
Prólogo. Ano 84 a.C.
«Arcóbriga e Meróbriga são cidades mortas desde que
os habitantes foram obrigados a descer para o vale. Abandonadas no alto dos
seus outeiros, elas dominam ainda a vasta planície ondulada, mas aqui, no
santuário, o deus fica-lhes sobranceiro porque este monte, que é a sua morada
terrena, ultrapassa em altura todos os morros vizinhos. Arcóbriga e Meróbriga
nasceram sob a protecção divina. Tanto quanto a memória dos homens recorda, as
muralhas das duas povoações nunca cederam a um ataque e mesmo quando soou a
hora da derrota não houve sofrimento ou ignomínia. Por isso, os antigos
habitantes, agora instalados ao longo da ribeira, continuam a trazer oferendas
à divindade, pois sabem que lhe devem a vida, o pão e a segurança que lhes
permite amanhar a terra, caçar, apascentar o gado e, pela tardinha, acender com
toda a tranquilidade os seus fogos para preparar a refeição da noite. É o fumo
desses fogos que vejo espalhar-se na planície, ao sabor do vento fresco e
forte. Também a fogueira que me protege contra o frio se verga ao ímpeto do
vento, mas quando olho em frente posso distinguir, no interior do templo, cuja
porta está aberta, a chama sagrada ardendo erecta e impassível, sem que um
sopro a perturbe. Mais perto de mim, ao ar livre, as flores que cobrem a ara
dos sacrifícios são varridas para o chão. Esta é a minha hora preferida. Os
ritos estão executados, as ofertas dos fiéis consagradas, os acólitos
recolheram aos seus alojamentos situados na encosta, para cozinhar a ceia, e os
peregrinos que desejam consultar o oráculo ainda não chegaram. Finalmente estou
só, envolvido pelo grande silêncio da terra. E este silêncio, tão profundo que
nele se perdem o canto dos pássaros e o silvo do vento, liberta a minha alma.
Quando nele mergulho, o deus fala-me, por vezes. Nem sempre foi assim. Os
deuses falam aos homens com vozes diferentes, conforme eles são capazes de
entender. Os jovens ouvem essas vozes no estrépito das batalhas ou no acto do
amor, os velhos aprendem a escutar de outra maneira. Outrora, também eu ouvi a
voz dos deuses no amor, na guerra, nos sonhos e na tempestade, até mesmo na
fala de outros mortais. Agora, que já passaram oitenta invernos na minha vida,
se é que não deixei escapar alguns sem dar por tal, resta-me o silêncio.
Não sinto amargura, apenas fadiga. Porém a fadiga
vai-se dissolvendo, como eu próprio me dissolvo lentamente no ar puro e
luminoso do santuário (quando, na Primavera passada, torci um tornozelo e tive
de ser transportado até ao templo pelos acólitos, eles ficaram surpreendidos ao
sentir o meu corpo tão leve e frágil). Vivi bastante mais que a maioria dos
homens. Durante muito tempo não compreendi por que razão os deuses conservaram
uma vida que, julgava eu, havia cumprido o seu destino em plena juventude.
Agora já sei, como sei muitas outras coisas: ouvi no silêncio a voz da divindade.
Por isso aqui estou sentado, gravando estas palavras em tabuinhas de cera que
vou amontoando à minha frente. Além, naquele cofre reforçado com chapas de
ferro, guardo o meu tesouro mais precioso, alguns rolos de papiro (o melhor
papiro do Egipto) onde copiarei em forma definitiva os textos ensaiados na
cera. Não temo que a morte me surpreenda a meio do trabalho, pois obedeço ao
deus e ele preservar-me-á até que eu cumpra a sua vontade. Estou nas suas mãos
e nada mais importa. In A história de
Tongio filho de Tongétamo, sacerdote do grande deus Endovélico e guardião do
seu santuário.
O oráculo
Eu nasci sob o jugo de Roma. O antigo reino do Cineticum, famoso pelos seus bosques, a doçura do
seu clima e as suas riquezas, é uma terra que desde sempre atraiu a presença
dos deuses e a cobiça dos homens. No ano em que vim ao mundo, já as águias
romanas dominavam metade da nossa costa, da foz do Anas para ocidente, e
pertenciam-lhes as grandes cidades de Ossónoba, no litoral, e Conistorgis,
no interior. Balsa, a minha terra natal, não é tão populosa mas no tempo
dos Fenícios foi um entreposto importante e ainda hoje figura entre os
principais portos do Cineticum. Porque nasci junto ao mar, ele é uma das
primeiras recordações da minha infância. Outra, por estranho que pareça, é um
amuleto que a minha mãe me pendurou ao pescoço para afastar as febres e as
dores quando os primeiros dentes começaram a romper. Esse amuleto, uma presa de javali, perfurada, suspensa
de um fio de couro muito fino e flexível, nunca me abandonou e deve ter sido
graças a ele que, em toda a minha vida, não me lembro de ter sofrido dos
dentes. Do lado materno descendo dos Cónios, cujos reis fizeram do Cineticum
um país próspero. Essa prosperidade trouxe comerciantes e invasores. Uns e
outros sucederam-se ao longo dos tempos: vindos do mar ou da vizinha Bética,
estabeleceram-se entre nós e acabaram por criar laços com a população cónia.
A sua vinda provocou muitas mudanças, entre elas o desaparecimento da dinastia
real que nos unificara. Mas o Cineticum soube absorver e assimilar os seus
dominadores (pelo menos, até os Romanos aparecerem). Na minha família, como em todas
as famílias das nossas cidades, há quase tanto sangue fenício ou turdetano como
antigo sangue cónio. As guerras e as invasões alteraram também o que parecia
ser o destino imutável dos homens do meu clã. Durante muitas gerações, desde a
época dos reis, nós pertencemos aos notáveis de Ossónoba; quando os guerreiros envelheciam e depunham as
armas tomavam assento no Conselho dos Anciãos e ocupavam-se das terras
que possuíam a leste do Promontório Sagrado. A vinda dos estrangeiros
acabou por quebrar essa tradição porque os laços do clã enfraqueceram e as
famílias separaram-se, espalharam-se por todo o Cineticum ou foram mais para
norte, além das serras. Cada agregado passou a contar somente com os seus
próprios membros ou com as amizades e alianças feitas na terra onde se
instalara.
O meu bisavô foi o último a seguir a carreira das
armas: alistou-se no exército
cartaginês, serviu sob o comando de Aníbal Barca e tombou em
Itália numa escaramuça com as legiões romanas. Os seus restos mortais nunca
foram recuperados e por isso os filhos não puderam cumprir os rituais fúnebres.
Diz-se que os mortos não perdoam a quem os deixa sem sepultura e o certo é que
em breve a sorte da família mudou e os quatro rapazes perderam quase todo o
património que haviam herdado. O terceiro filho, porém, não aceitou
passivamente a má fortuna: sem consultar ninguém, executou ele mesmo os ritos
apropriados perante um sepulcro vazio que comprara, para que o espírito do
defunto soubesse que lhe eram prestadas as honras exigidas, e tomando sob a sua
protecção o irmão mais novo (que viria a ser o meu avõ materno), foi
estabelecer-se em Balsa como mercador. Morreu cedo, antes de casar, mas
o meu avô, um homem inteligente e enérgico, aprendera o ofício e soube refazer
a riqueza perdida. Casou com uma jovem pertencente à pequena nobreza local e
dela teve dois filhos: Camalo, que ele iniciou nos negócios, e Camala,
a minha mãe». In João Aguiar, A Voz dos Deuses,
1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007,
Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.
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