«Espero que este livro nunca venha a ser
lido. Há entre nós melhor do que um amor: uma cumplicidade». In
Marguerite Yourcenar
«(…)
Confessa-se antes de morrer para ter mais uma vez o prazer de falar do seu
crime. Sem mudar de lugar, regressa ao palácio familiar onde a falta é uma
inocência. Empurrada pela multidão dos seus antepassados, desliza ao longo
desses corredores de metro, cheios de um cheiro animalesco, onde os remos
quebram a água gordurosa do Styx, onde os carris luminosos não propõem mais do
que o suicídio ou a partida. No fundo das galerias de mina da sua Creta
subterrânea, acabará finalmente por encontrar o jovem desfigurado pelas
dentadas de fera, uma vez que, para se lhe reunir tem todos os desvios da
eternidade. Não voltou a vê-lo desde a grande cena do terceiro acto; foi por
causa dele que ela morreu; foi por causa dela que ele não viveu; ele não lhe
deve senão a morte; ela deve-lhe os sobressaltos de uma agonia inextinguível.
Tem o direito de o tornar responsável pelo seu crime, pela sua imortalidade
suspeita nos lábios dos poetas, que se servirão dela para expressar as suas
aspirações ao incesto, como o condutor que jaz na estrada, de crânio desfeito,
pode acusar a árvore contra a qual foi embater. Como qualquer vítima, foi o seu
carrasco. Palavras definitivas sairão por fim dos seus lábios, que a esperança
já não faz tremer. Que dirá ela?
Certamente, obrigada.
De
avião, junto a ti, já não temo o perigo. Não se morre senão sozinho
Nunca
serei vencida. Não o serei senão à força de vencer. Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais no amor que acabará por ser o meu túmulo, acabarei a
minha vida numa cela de vitórias. Sozinha, a derrota encontra chaves, abre
portas. A morte, para atingir o fugitivo, tem de se pôr em movimento, perder essa
fixidez que nos faz reconhecer que ela é o duro contrário da vida. Ela dá-nos o
fim do cisne atingido em pleno voo, de Aquiles agarrado pelos cabelos por não
sabemos que sombria Razão. Como a mulher asfixiada no vestíbulo da sua casa de
Pompeia, a morte não faz mais do que prolongar no outro mundo os corredores da
fuga. A minha morte será de pedra. Conheço as passagens, as curvas, as
armadilhas, todas as minas da Fatalidade. Não posso perder-me. A morte, para me
matar, terá necessidade da minha cumplicidade. Já notaste que os fuzilados se abaixam, caem de joelhos?
Tornando-se moles apesar das cordas, dobram-se como se desmaiassem depois de um
ataque. Fazem como eu. Adoram a sua morte. Não há amor infeliz: não possuímos
senão aquilo que não possuímos. Não há amor feliz: o que possuímos, já não o
possuímos. Nada a temer. Cheguei ao fundo. Não posso cair mais baixo do que o teu
coração.
Aquiles
ou a mentira
Tinham
apagado todas as lâmpadas. As criadas, na sala térrea, teciam às cegas os fios
de uma trama inesperada que se tornava na das Parcas; um bordado inútil
pendia das mãos de Aquiles. O vestido negro de Misandre já não se distinguia do
vestido vermelho de Deidamia; o vestido branco de Aquiles ficava verde debaixo
da lua. Desde a chegada dessa jovem estrangeira na qual todas as mulheres
pressentiam um deus, o temor tinha-se introduzido na ilha, como uma sombra deitada
aos pés da beleza. O dia já não era o dia, mas sim a máscara loura pousada
sobre as trevas; os seios das mulheres tornavam-se couraças em gargantas de soldados.
Desde que Tétis tinha visto formar-se nos olhos de Júpiter o filme dos combates
em que sucumbiria Aquiles, procurara em todos os mares do mundo uma ilha, um
rochedo, um leito suficientemente estanque para vogar no futuro. Esta deusa agitada
tinha quebrado os cabos submarinos que transmitiam na ilha os abalos das
batalhas, furado o olho do farol que guiava os navios, expulso a golpes de
tempestade as aves migratórias que levavam ao seu filho as mensagens de irmãos
de armas. Tal como os camponeses põem roupas de rapariga aos filhos doentes,
para despistar a Febre, ela tinha-o vestido com as suas túnicas de deusa que
derrotariam a Morte. Esse filho infectado pela mortalidade lembrava-lhe a única
falta da sua juventude divina: tinha dormido com um homem sem tomar a precaução
banal de o transformar em deus. Encontravam-se nele os traços desse pai
grosseiro, revestidos de uma beleza que não retinha senão dela, e que um dia
deveria tornar-lhe mais penosa a obrigação de morrer. Vestido de seda, velado de
gases, atafulhado de colares de ouro, Aquiles penetrara por sua ordem na torre
das jovens; tinha acabado de sair do colégio dos Centauros: cansado de
florestas, sonhava com cabeleiras; farto de gargantas selvagens, sonhava com
seios». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel,
Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.
Cortesia
Difel/JDACT