quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Memórias de Agripina. Pierre Grimal. «O quarto estava agora em completa escuridão. A minha mãe estava em silêncio, mas os seus lábios moviam-se. Sonhava com o quê? Com o passado que vivera? Com o futuro que a esperava e que eu percebera que ela temia?»

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O Tempo de Meu Pai
«(…) Não era absolutamente seguro que tudo não passasse de uma comédia, e decerto imaginas que eu protestei contra tudo aquilo. Conheces-me o suficiente para saber até que ponto detesto a cobardia ou mesmo a sua aparência. Eu era sincera, e isso permitiu dar o espectáculo de uma cena de suplicações, eu recusando-me a deixar Germânico e ele pressionando-me com argumentos afectuosos. Naturalmente, tal cena atraiu, pouco a pouco, espectadores. Assim que eu cedi e que a fila de carros partiu do centro do acampamento, para se dirigir para a porta principal, uma multidão de soldados acompanhou-o. Tudo aquilo era suficientemente patético. Espalhou-se o boato de que íamos pedir abrigo aos Tréveros, tu sabes quem são, o povo gaulês que nos é tão fiel. Perante a ideia de que estaríamos mais seguros entre Gauleses do que no acampamento das legiões, os soldados indignaram-se, ficaram desolados e enfureceram-se. Queriam reter os carros. O teu pai aproveitou para lhes dirigir um discurso bastante hábil; nele reconheci, em diversos momentos, a memória dos grandes oradores do passado. A conclusão foi que eu não ficaria no acampamento. A estação estava já muito avançada e tu não tardarias em nascer. Aqueles que procuravam reter-me, mas por que não provavam eles, de uma forma evidente, que tinham voltado ao cumprimento do dever? Eles podiam fazê-lo, condenando à morte, de surpresa, os culpados da rebelião! Eis, concluiu a minha mãe, as circunstâncias em que tu, minha filha, nasceste. Entre perigos e semelhante a uma personagem trágica.
Eu ouvia tudo aquilo um pouco enfastiada, como a narração de coisas distantes com as quais se deleitam, inexplicavelmente, os mais velhos, que lhes associam um interesse, que, de uma forma vã, tentam partilhar com jovens auditores. Não obstante, guardava para mim a ideia de que o destino fizera de mim, antes mesmo de eu nascer, uma heroína de tragédia. Uma rainha, evidentemente. Com excepção das rainhas, não há, nas tragédias, senão amas e confidentes. Eu não poderia ser nem uma nem outra. Portanto, era chamada a ser rainha! Quando a tardinha sobreveio, uma luz mais clara apareceu sobre o Janículo, acompanhando o pôr-do-sol. A minha mãe adormecera, e eu fiquei sozinha, a pensar, tentando recordar-me do que ela dissera. Não tinha a certeza de ter compreendido tudo. As palavras, por certo, seria capaz de as repetir, estavam gravadas na minha memória e ainda hoje, depois de trinta anos, as posso recordar! Mas o seu sentido não me parecia muito claro. Deixaram-me duas ou três impressões. Em primeiro lugar, a importância dos soldados na vida do Estado, o poder que tinham para pôr ou depor imperadores, consoante aqueles a quem se ligavam. Compreendi também que esse poder assentava no direito, que lhes era reconhecido, de matar.
E então, a minha digressão voou até à pessoa de meu pai, de quem apenas tinha imagens confusas, mas bastante exaltantes! A do triunfador, sobre o carro que o conduzia ao Capitólio, para homenagear Júpiter Óptimo Máximo com a sua vitória. Também eu estava no carro, com os meus três irmãos mais velhos e a minha irmã Drusila, a mais nova. Ela não tinha ainda seis meses. Eu tinha muito orgulho por ser maior do que ela. Eu tinha dois anos e meio! O triunfo do meu pai. Ainda uma das minhas maiores recordações, aquela que eu gostava de lembrar, com todos os pormenores que conseguia encontrar, à noite, quando adormecia: os gritos da multidão, o passo dos soldados sobre as lajes da Via Sacra, os prisioneiros germanos que precediam o cortejo dos vencedores e as imagens, pintadas em grandes painéis, dos países que as nossas legiões tinham conquistado, das montanhas, dos rios, do sítio onde eu nascera e que, para mim, assumia a forma de uma lenda. E depois, vinha o próprio Germânico, grande, magnífico, dominando toda a cena. Conheci-o tão pouco, por tão pouco tempo!
O quarto estava agora em completa escuridão. A minha mãe estava em silêncio, mas os seus lábios moviam-se. Sonhava com o quê? Com o passado que vivera? Com o futuro que a esperava e que eu percebera que ela temia? As últimas luzes do dia deixavam-me ainda distinguir, sobre as paredes do quarto, imagens que, como eu sabia, o meu pai mandara pintar, muito antes de conhecer o Egipto, aonde ele não conseguiu evitar ir, no último ano da sua vida. Aí havia figuras estranhas, que me causavam um pouco de medo. Um servo, chamado Psamútis, que viera de 1á com a minha mãe, ensinara-me o nome dessas figuras e coisas estranhas a seu respeito. Vês, dizia-me ele, esta deusa de pé, que tem um crescente de lua sobre a cabeça, vês o seu longo vestido branco e o seu manto azul? É Ísis, a rainha. Acaba de dar a vida a Osíris, seu marido, que estava morto... Eu pensava naquela que tinha o poder de reanimar os mortos, e perguntava a mim mesma se a minha mãe alguma vez se tentara convencer de que a graçade Ísis lhe devolveria, um dia, aquele que ela perderaIn Pierre Grimal, Memórias de Agripina, Lyon Edições, Romances Históricos, 2000, ISBN 972-8461-51-8.

Cortesia Lyon E./JDACT