quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

De Volta a Istambul / A Bastarda de Istambul Elif Shafak. «Esse era um aspecto da chuva que se assemelhava à tristeza: a pessoa fazia tudo para permanecer intacta, segura e seca, mas se e quando isso falhava, chegava um ponto em que se começava a ver o problema não em termos de gotas…»

Cortesia de wikipedia

«Outrora havia; outrora não havia. As criaturas de Deus eram abundantes como grãos. E falar demais era um pecado...»

Canela
«Seja lá o que cair do céu, não o amaldiçoarás. Isso inclui a chuva. Por mais que desabe o aguaceiro, por mais força com que as nuvens se rompam ou o gelo do granizo caiem em bátegas sobre a terra, nunca se deve emitir blasfémias contra qualquer coisa que o céu tenha reservado para nós. Todos sabem disso. Inclusive Zeliha. Mesmo assim, lá estava ela na primeira sexta-feira daquele mês de Julho, caminhando por uma calçada que fluía próxima ao tráfego inevitavelmente congestionado, atrasada para um encontro, praguejando como um soldado, sibilando um palavrão atrás do outro para as pedras quebradas da calçada, para seus saltos altos, para o homem que a espreitava, para os motoristas que buzinavam freneticamente quando é sabido que buzinar não desatravanca tráfego algum, para toda a dinastia otomana por ter conquistado no passado a cidade de Constantinopla e se aferrado ao seu equívoco, e, sim, para a chuva..., aquela porcaria de chuva. A chuva era uma agonia ali. Em outras partes do mundo, um aguaceiro provavelmente chega como uma dádiva para quase tudo e todos, bom para as lavouras, para a fauna, para a flora, e com um toque extra de romantismo,para os amantes também. Mas não em Istambul. Para nós, a chuva não significa necessariamente ficar molhado. Nem mesmo ficar sujo. Se significa alguma coisa, é nos deixar com raiva. É lama e caos e fúria, como se já não tivéssemos o suficiente. É luta. Sempre significa uma luta. Como gatinhos jogados num balde d’água, os dez milhões de nós travam uma luta fútil contra os pingos. Não se pode dizer que estamos completamente sozinhos nessa refrega, pois as ruas também participam, com seus nomes antediluvianos escritos a estêncil em placas de metal, as lápides de tantos santos espalhadas em todas as direcções, as pilhas de lixo que esperam em quase todas as esquinas, os buracos gigantescos dos canteiros de obras que logo serão transformados em edifícios modernos e extravagantes, e as gaivotas... Todos nos enraivecemos quando o céu se abre e a chuva desaba sobre nós.
Então, quando os pingos finais batem no chão e muitos outros descansam nas folhas agora sem poeira das árvores, naquele momento desprotegido em que não se tem certeza de que parou de chover, da mesma forma que a própria chuva não tem, exactamente naquele interstício tudo se torna sereno. Por um longo minuto, o céu parece desculpar-se pela bagunça que causou. E nós, com gotículas ainda nos cabelos, lama nas calças e cansaço no olhar, fixamos de novo o céu, agora com um tom mais leve de azul e mais claro do que nunca. Olhamos para cima e não podemos deixar de sorrir em resposta. Nós a perdoamos; sempre o fazemos. Porém, naquele instante, a chuva ainda caía e Zeliha tinha pouco perdão no coração, se é que tinha algum. Estava sem guarda-chuva, pois prometera a si mesma que, se fosse idiota de desperdiçar dinheiro comprando outro guarda-chuva num ambulante para esquecê-lo logo que o sol voltasse, merecia ficar ensopada até os ossos. Além disso, fosse como fosse, era tarde demais. Já estava encharcada. Esse era um aspecto da chuva que se assemelhava à tristeza: a pessoa fazia tudo para permanecer intacta, segura e seca, mas se e quando isso falhava, chegava um ponto em que se começava a ver o problema não em termos de gotas, mas de uma torrente incessante, e decidia-se então que pouco importava se encharcar. A chuva pingava dos seus cachos escuros para os seus ombros largos. Como todas as mulheres da família Kazanci, o cabelo de Zeliha era formado por anéis crespos, negros como um corvo, mas, ao contrário das outras, gostava de mantê-lo assim.
De tempos em tempos, os seus olhos verde-jade, normalmente muito abertos e de uma inteligência feroz, apertavam-se em duas linhas de imaculada indiferença inerente apenas a três grupos de pessoas: os irremediavelmente ingénuos, os irremediavelmente retraídos e os irremediavelmente esperançosos. Não pertencendo a nenhum deles, era difícil entender a sua indiferença, mesmo que fosse tão fugidia. Num minuto estava ali, cobrindo a sua alma de uma entorpecida insensibilidade, mas no minuto seguinte desaparecia, deixando-a sozinha no seu corpo. Assim Zeliha sentia-se naquela primeira sexta-feira de Julho, insensível como se estivesse anestesiada, um estado de espírito poderosamente corrosivo para alguém tão cheia de entusiasmo.
Seria por isso que não tinha absolutamente qualquer interesse em lutar contra a cidade hoje, ou mesmo contra a chuva? Enquanto a indiferença subia e descia como um ioiô de ritmo todo próprio, o pêndulo de seu ânimo oscilava entre dois pólos opostos: congelando e fervendo de raiva. Enquanto Zeliha passava rapidamente por ali, os ambulantes vendendo guarda-chuvas, capas e lenços de cabeça de plástico em cores vibrantes a olhavam atentamente, divertindo-se. Ela conseguia ignorar os seus olhares do mesmo modo que ignorava o olhar de todos os homens que lhe fixavam o corpo com avidez. Os ambulantes olhavam também, com reprovação, para seu brilhante anel no nariz, como se ali estivesse a pista para seu desvio de decência e, consequentemente, o sinal de sua luxúria. Zeliha tinha um orgulho especial de seu piercing porque ela mesma o colocara. Doera, mas o piercing estava ali para ficar, assim como o seu estilo. Apesar do assédio dos homens ou da censuradas mulheres, da impossibilidade de andar sobre as pedras redondas quebradas ou de pular para dentro das barcas, e até do ralhar constante da sua mãe..., não havia poder na terra que impedisse Zeliha, mais alta que a maioria das mulheres na cidade, de usar mini-saias de cores vivas, blusas justas que exibiam os seus seios fartos, meias acetinadas de nylon, e sim, aqueles saltos tremendamente altos». In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.

Cortesia de EBF/JEditora/JDACT