domingo, 18 de janeiro de 2015

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. Tradução de Maria Jorge Figueiredo. «Estamos no reino da complexidade. Sente-se isso vendo, por exemplo, o modo como a Cúria romana recebeu a obra, com a naturalidade, primeiro, de quem observa coisa sua, para depois a condenar ao catálogo dos livros proibidos»

jdact

Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Filho de advogado literato e por isso pobre, Nicolau Maquiavel, cultor das letras, pobre morreu também. Legou-nos, inédita, uma obra que é um sonho fantasioso de grandeza, tal como o estranho sonho que terá tido, segundo consta, antes de morrer. Circula, entre a lenda e o possível, a narrativa do sonho blasfemo de Maquiavel que, no leito de morte, teria, em onírica fantasia, visto um mundo em que a turba dos pobres e dos simples caminhava para o Céu, os filósofos antigos, Platão, Plutarco, Tácito, e outras graves figuras da cidadania condenadas ao Inferno, porque estava escrito: Sapitentia huius saeculi inimica est Dei. Posta em dúvida a sua autenticidade, o sonho tem servido como instrumento de cristianização do ímpio Maquiavel, que ante o momento de prestar contas ante um Deus que, com a sua obra, ofendera, blasfemando-o pelas conveniências da política, terminara a vida mandando os políticos, de que fora conselheiro, arder nas fogueiras infernais. Trata-se de um sonho análogo, embora de sinal diverso, ao sonho de Cipião, que Cícero relata no seu tratado sobre as repúblicas: para todos os que conservaram, ajudaram e engrandeceram a pátria, está guardado no céu um lugar especial. Mas não basta conhecer o homem e a sua circunstância, importa também ter a percepção dos variados contextos pelos quais a obra passou ao longo do tempo e as mais antagónicas leituras que proporcionou, sempre sem esquecer em que estado se encontrava a península itálica onde foi escrita e encontrada a crueza do poder e a malícia interesseira generalizada, afinal o cenário desta encenação, O Grande Teatro do Mundo.
Estamos no reino da complexidade. Sente-se isso vendo, por exemplo, o modo como a Cúria romana recebeu a obra, com a naturalidade, primeiro, de quem observa coisa sua, para depois a condenar ao catálogo dos livros proibidos. O livro foi aceite primeiro com indiferente contemporização por um papado corrompido e em promíscua relação com o poder temporal, destinatário natural de muitos destes pensamentos; no capítulo XI, dedicado aos principados eclesiásticos, o papa Leão X vê o seu pontificado retratado como potentíssimo e Maquiavel a augurar que, erigido com armas pelos seus santíssimos antecessores, seja agora grandíssimo e venerando através da sua bondade e infinitas outras virtudes. Não poderia haver maior lisonja. O modelo monárquico do papado, com a transformação do chamado património de São Pedro num principado, tendo à cabeça um sumo pontífice, foi levado a cabo a partir da segunda metade do século XV quando o papa Eugénio IV se estabelece definitivamente em Roma, em 1443,vitorioso sobre quantos pretendiam a supremacia da autoridade dos concílios sobre o papa. A queda de Constantinopla em 29 de Maio de 1453, às mãos do turco Maomé II, veio abrir a porta para a supremacia da IgrejaCatólica Apostólica Romana. Dotado de exército próprio, de cerca de dez mil homens, a que acresciam mercenários, o Estado Pontifício em pouco se distinguia das outras potências temporais. Pouco mais de quarenta anos volvidos, em 1519, por decreto do papa Paulo IV (nascido Gian Pietro Caraffa), O Príncipe entrava, porém, na lista dos livros amaldiçoados pela doutrina católica e, a partir daí, ler Maquiavel passou a significar estar em pecado de heresia, o autor queimado em efígie, os teólogos a clamarem pela fogueira como argumento final contra o seu pensar. Paulo IV procedeu à reorganização do Tribunal do Santo Ofício (maldito), incumbido da polícia da fé e do combate às heresias, criando a Congregação da Sacra Romana e Universal Inquisição (maldita), e lançou o Index dos livros proibidos, por decreto de 30 de Dezembro de 1518, publicado no ano seguinte. Nele todas as obras de Maquiavel, de Rabelais e de Erasmo de Roterdão eram referidas como de leitura vedada. Com o Concílio de Trento, em 1564, foi elaborado um segundo catálogo de livros proibidos (Index librorum probibitmum a Summo Pontifice) e mantida a interdição sobre a obra de Maquiavel». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução a partir do original de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT