quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Propriedade e direito entre os muçulmanos de Portugal. Dos bens comuns à gestão do património do rei. Maria Filomena Barros. «… o monarca incumbiu ao alcaide da comuna de Lisboa a tarefa de juntar ‘mouros letrados e sabedores em sua lei’, para a corrigir e acrescentar no que necessário fosse»

Cortesia de wikipedia e jdact

Sharq Al-Andalus. Estudios Mudéjares y Moriscos
«A propriedade detida ou usufruída pelos muçulmanos do reino português revela características especificas, advindas de uma mescla entre formas de exploração que se impõem no contexto da medievalidade ocidental, como de uma individualidade imputável aos seus traços identitários, emanando do próprio direito islâmico. Vector que, de resto, não surpreende na avaliação global de uma identidade mudéjar, justamente singularizada pela sua dupla adscrição a cultura maioritária, assim como aos valores matriciais que definem a sua etnicidade e consequente alteridade como grupo diferenciado. Dualidade que define uma identidade e um ethos, necessariamente distinta de outras dimensões políticas muçulmanas, configurando o mudéjar do discurso historiográfico, de cuja sujeição aos poderes cristãos não está ausente a sua própria participação nesses mesmos mecanismos de poder. Aspecto bastas vezes preterido em função de uma perspectiva demasiado estática dos processos sociais e de uma noção abstracta de poder. O programa político dos reinos medievais cristãos, necessariamente definido e controlado pelas suas elites, recupera um Islão domado, isto é, submetido aos seus próprios interesses, através de actos escritos de legitimação. Esta remição para a praxis política de comunidades muçulmanas, administrativamente estruturadas e dispondo de autoridades próprias, pressupõe um ininterrupto diálogo (ainda que necessariamente assimétrico), que fluirá entre os dois extremos da escala política, numa assumpção do monarca como o natural protector dos seus muçulmanos. Estes, de resto, no reino português, constituir-se-ão como os agentes sociais mais activos na definição dos parâmetros da sua sujeição, através do seu próprio capital cultural e simbólico, num processo de redefinição constante, adaptado e solicitado pela natural evolução social e politica da medievalidade.

Direito islâmico. Produção vernácula
O direito islâmico constituir-se-á como um dos vectores estruturantes tanto de identidade como de sujeição, aspectos complementares de um mesmo processo. Se, num período formativa, ele enformara necessariamente as condições de permanência das diferentes comunidades muçulmanas peninsulares (correspondendo a uma natural premência dos conquistadores), a sua evolução não deixa de se fazer sentir ao longo das diferentes centúrias, em função dos distintos contextos considerados. Em finais do século XIV e ao longo do XV, é o monarca português que, ao reivindicar a sistematização das cláusulas sobre as heranças dos muçulmanos, estabelece uma apropriação lidimada no próprio direito sucessório islâmico, concitando a produção de textos legais neste sentido. Acção que se estrutura num discurso de legitimação, porque implica um registo de paralelismo com os dirigentes muçulmanos (os pretéritos, mas também os coevos de Terra de Mouros), canalizando para o soberano, os bens que, por falta de herdeiros, seriam dirigidos para o erário publico. De resto, esta perspectiva será expressamente enunciada no prólogo do segundo texto, que se inicia justamente pela justificação ideológica da medida: Porque a herança dos Mouros forros moradores em estes Regnos, e Senhorios pertencem a Nos [Rei] em muitos casos, assy como he devuda aos Reys Mouros em seus Regnos, e Senhorio (…).
Neste sentido, os dois textos elaborados, em português, sobre esta problemática pelos letrados da comuna de Lisboa deixam claro a prioridade subjacente à sua própria produção. O prólogo do mais pretérito, do reinado de João I (1385-1433), refere que o levantamento se constitui como uma resposta à pergunta feita pelo juiz Álvaro Peres, pelo qual o soberano ordenou que se soubesse de que modo ele próprio se constituía como herdeiro dos bens dos muçulmanos. O segundo, de Afonso V (1438-1481), justifica-se em função do soberano considerar a produção anterior pouco legível (imperfeita, e muito escura), o que teria dado origem a muitos debates, e contendas (…) antre elle e os ditos Mouros. Para superar essa situação, o monarca incumbiu ao alcaide da comuna de Lisboa a tarefa de juntar mouros letrados e sabedores em sua lei, para a corrigir e acrescentar no que necessário fosse. O resultado final será o publicado nas Ordenações Gerais do Reino, com o título significativo De como El Rey deve herdar os Mouros forrros moradores em seus Regnos, e Senhorio, num diploma de uma maior abrangência e complexidade, denotando um total domínio da casuística sunnita malikita». In Maria Filomena Lopes Barros, Sharq Al-Andalus, Estudios Mudéjares y Moriscos, Propriedade e direito entre os muçulmanos de Portugal, Dos bens comuns à gestão do património do rei, Separata nº 19, Teruel - Alicante, 2008-2010, CIDEHUS, Universidade de Évora, ISSN 0213-3482.

Cortesia daUÉvora/JDACT