sábado, 24 de janeiro de 2015

Contos Júlio Cortázar. André Bueno. «No conjunto da obra de Cortázar, Libro de Manuel ocupa um lugar difícil. Sem exagero, é possível dizer que nessa narrativa o escritor argentino faz uma aposta de alto risco, com plena consciência do movimento que fazia…»

Cortesia de wikipedia

«Este artigo aborda a relação entre literatura e estados de excepção, o problema crítico posto pela representação que pode, ou não, estetizar a violência. Apresentado o problema crítico, são analisados alguns contos. Ao longo de sua trajectória, o escritor argentino ficou conhecido por contos e romances que escapam à moldura clássica do realismo. Para definir o seu estilo, e de outros escritores latino-americanos daquele período, a crítica cunhou rótulos do tipo realismo fantástico, mágico ou maravilhoso. Ao leitor atento não escapa que esses rótulos genéricos, aplicados, por exemplo, a Cortázar, Borges, Garcia Márquez e Alejo Carpentier, ao mesmo tempo, são imprecisos. É certo que Cortázar gostava do género fantástico, que comparece de muitos modos n sua obra. No entanto, melhor seria notar o modo como o escritor argentino radicado em Paris cria uma estranheza profunda a partir da vida mais comum e quotidiana. Os mais entusiastas do fantástico, do mágico e do maravilhoso costumam descartar, por inteiro, o realismo. Muitas vezes, chegando a um novo tipo de folclore em relação à América Latina, que seria justamente mágica e maravilhosa, por oposição ao seco racionalismo europeu. Que isso resulta numa idealização e folclorização do atraso e da miséria na América Latina não é difícil notar. Escritor culto e urbano, leitor incansável e preparado, Cortázar passou longe e ao largo dessas reduções folclóricas. Mais que folclóricas, regressivas, porque representam a América Latina na forma de cartões postais exóticos, os pobres passeando na paisagem exuberante, a dureza da injustiça diluída em variações idealistas que se pode, ainda e sempre, entender como sequelas do subdesenvolvimento. Para resumir o argumento, não é difícil notar que a representação realista está presente nos relatos de Cortázar, com maior ou menor ênfase, justo do ângulo da vida comum e quotidiana. A diferença específica está no modo como a composição contrapõe a esse realismo de base o fantástico, o insólito, o inesperado, o excêntrico, o deslocado, como se queira chamar, criando a força e o alcance do efeito estético. Sobretudo nos contos, nas composições curtas, construídas com muita precisão, formas breves que Cortázar considerava perfeitas, redondas, quase geométricas. De modo que a realidade não é sem mais delongas descartada, mas posta em tensão com ângulos que escapam ao racionalismo estreito, ao que é estabelecido e definido, ao que se apresenta pronto e fechado, integrado e conformado ao rótulo de realidade. Daí o desejo, sempre presente em Cortázar, de criar pontes e passagens, jogar com o tempo e o espaço, tomar distância do que se repete e empobrece a imaginação, a vida, a própria percepção da realidade. A certa altura da vida, empenhado em lutas políticas no campo da esquerda, Cortázar quis juntar as duas águas, as duas vertentes, a fantástica e a realista, a que dá asas à imaginação e a que trata da realidade histórica mais próxima e presente, justo pelo ângulo duro dos estados de excepção. Era um movimento de risco, que se pode ler no romance Libro de Manuel, tratando directamente da luta armada contra a ditadura militar na Argentina. No conjunto da obra de Cortázar, Libro de Manuel ocupa um lugar difícil. Sem exagero, é possível dizer que nessa narrativa o escritor argentino faz uma aposta de alto risco, com plena consciência do movimento que fazia e das reacções que poderia desencadear. Ao contrário do escritor famoso que apenas administra a sua obra e seu património, o valor do nome já firmado e consolidado, no começo da década de 1970 Cortázar escreve e publica Libro de Manuel. Onde se podem ler as inquietações presentes em Rayuela, todo o inconformismo de fundo libertário posto ao lado da dureza da luta armada. A preocupação política do escritor argentino era clara, e foi mais de uma vez enfatizada: em contato com alguns militantes da luta armada que passaram por Paris, notou neles uma secura, uma falta de humor, uma rigidez, um tipo de atitude sem nuances que sugeria, caso vencessem, uma Revolução que não seria a imaginada por Cortázar». In André Bueno, Alguns contos de Cortázar. Literatura e autoritarismo, Espaço urbano e Experiências de desolação e violência, revista nº 19, 2012, ISSN 1679-849X.

Cortesia de RLAutoritarismo/JDACT