domingo, 18 de janeiro de 2015

O Príncipe. Nicolau Maquiavel. Tradução de Maria Jorge Figueiredo. «… amado ou odiado, ele teve o condão de, ‘secula seculorum’, não deixar ninguém indiferente e muitos tomaram partido em seu favor. Croce considera-o um homem de uma austera e dolorosa consciência moral, Ridolfi acha-o um cristão especial»

Cortesia de wikipedia

Jamais houve homem menos maquiavélico do que Maquiavel. In Villari

Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Mas foi no campo da política que a obra sofreu as mais diversas interpretações e serviu para legitimar as mais distintas ideologias: caucionou tiranias e foi tida como expoente de democracia, apontada como exemplo de realismo político e como manifesto de resistência amarga de uma vítima do poder. O marxista Antonio Gramsci (1891- 1937) leu apreciativamente o livro na frieza do cárcere, o fascista Benito Amilcare Andrea Mussolini (1383-1945) citou-o, como exemplo, nos seus histriónicos discursos. O Príncipe é, pois, uma excelente demonstração de que no devir da História cada coisa contém em si própria o ridículo do seu contrário. Antonio Gramsci, Note sul Machiavelli sulla Politica e sullo Stato Moderno, 1971. A visão apreciativa de O Príncipe havia sido considerada criminosa na União Soviética; Lev Kamenev (1883-1936) traduziu em 1934 o livro para russo, citando-o como um precursor das análises de Marx, Engels, Lenine e Estaline. Tal ousadia e outras afins custar-lhe-iam a vida, acusado em 22 de Agosto de 1936 por Andrei Vyshinsky, o procurador soviético, aquando do seu julgamento no quadro das grandes purgas estalinistas. … que os cães enraivecidos sejam mortos a tiro!, pediu Vyshinsky nas suas alegações finais! E foram. Livro herético, ele moveu, logo desde o século XVI, uma cruzada antimaquiavelista, que levantou pendão nos campos de batalha do pensamento filosófico, histórico, político e ético, mobilizando forças para o enfrentar, como se contra o próprio Demónio se travasse esse combate. Curiosamente, parte substancial dessa peleja passou por Portugal como uma decorrência do mandato ingente da propagação do império através da fé.
Espanha e Portugal colocam-se desde a primeira hora em oposição política a O Príncipe, escreveu, em 1939, Vergílio Taborda, professor da Faculdade de Letras de Coimbra (… falecido com pouco mais de trinta anos, Vergílio Taborda escreveu, ainda como estudante, um estudo intitulado Maquiavel e Antimaquiavel, que a editora Atlântida editaria em 1939 e que mereceria uma nota prévia de Francisco Morais, Manuel Lopes d'Almeida e Paulo Quintela. Citando como seu mestre Gonçalves Cerejeira, cardeal-patriarca desde 1929, e que é um dos mais lídimos pensadores da doutrina católica, Taborda regista que desde a segunda parte do século XVI e por todo o século XVII os contraditores de Maquiavel são aqui legião, da rosa dos ventos do saber: teólogos, canonistas, filósofos, políticos, juristas, diplomatas, clérigos, laicos, nobres e plebeus), quatro anos depois de ter surgido, pela mesma editora, a primeira versão do livro em língua portuguesa. E porquê? Porque, escreve Taborda, defendendo a cidadela da fé em todos os campos, a Península não deixaria de fazê-Lo também no da política. O maquiavelismo era a expressão máxima da política nova, realista e pagã: combatendo-a, as nações peninsulares não se afastavam do caminho que se haviam proposto percorrer. Eis, encontrada no espírito do seu tempo, a bandeira intemporal de um exército que ainda hoje se não desbaratou e cuja linha da frente é encabeçada pela defesa da moral religiosa enquanto conceito ético do poder justo, contra a visão pessimista da realidade humana, contra a política de força, a política de dissimulação e de perfídia.
No ano passado (2007), Martim Albuquerque, um historiador de pensamento filosófico conservador e de inspiração religiosa, dedicado à história das ideias políticas, publicou um livro em que defende a tese segundo a qual o pensamento maquiavélico, eis como o trata, é incompatível com o que chama a ética tradicional portuguesa, a mesma que, segundo ele, criou a figura do fidalgo, seu antagonista e da sua moral prática. O livro amplia um outro, escrito em 1973 e publicado em 1974 pelo Instituto Histórico Infante Dom Henrique, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que se inspirara num trabalho sobre o mesmo tema e, curiosamente, com o mesmo título escrito por Mário Albuquerque, em 1954. Trata-se de uma obra de fôlego, profundamente documentada, que permite ao autor concluir que o pensamento tradicional português é antimaquiavélico (?) e que o maquiavelismo é incompatível com a necessidade da expansão e com a psicologia de um povo sonhador de quinto-impérios e criador do tipo ideal do fidalgo. O Príncipe é, pois, um pequeno livro que ainda hoje suscita grandes paixões na delimitação da fronteira entre a virtude e o pecado no campo da política e da própria filosofia do comum viver. Sucedeu assim porque o autor e a obra, uma vida e um livro, uma narrativa e uma doutrina, se confundiram numa mistura sincrética, pela qual se condenou à maldição eterna este opúsculo que, numa fórmula de Bertrand Russell, é um livro para gangsters. Mas não pense o leitor que tem em mãos páginas que apenas suscitaram censura e concitaram contra si detractores e maldizentes. Fazendo contemporânea recensão do muito que se escreveu sobre Maquiavel, Isaiah Berlin, um espírito lúcido e erudito, acumularia um tão vasto acervo de epítetos, tão pitorescos quanto entre si contraditórios, a propósito do secretário, tudo a mostrar que, amado ou odiado, ele teve o condão de, secula seculorum, não deixar ninguém indiferente e muitos tomaram mesmo partido em seu favor. Benedetto Croce considera-o um homem de uma austera e dolorosa consciência moral, Ridolfi  acha-o um cristão especial». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução de José António Barreiros, tradução a partir do original de Maria Jorge Figueiredo, Editorial Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.

Cortesia de EPresença/JDACT