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Foi a minha avó que me contou. A minha avó Jacinta, tão diferente da filha, tão
alegre e directa e terra-a-terra e desbocada, que faz a minha mãe morrer de
vergonha com a sua total ausência de hipocrisias classe média, a sua
vitalidade, o seu apetite, os seus sapatos todo-o-terreno. A minha mãe deixou
de ser uma Ferreira para se transformar, com o casamento, numa Mendonça; numa
senhora como-deve-ser; num tailleur escuro de bom corte; num agasalho de peles
herdado da sogra; numa frase feita; num cliché. O meu avô João Teófilo, diz a
avó Jacinta, morreu do 25 de Abril. Não da democracia, nem das novas ideias que
aliás professava, mas da ingratidão dos seus homens que estimava e ajudava como
se fossem família. Apareceu-lhe um grupo de mal-encarados com o Custódio à
frente, de caçadeira; ó senhor engenheiro, isto não é nada com vosse-mecê, mas
tem uma semana para deixar a casa e o monte que isto agora é tudo da gente. É o
quê, meu filho de uma grande pu…? Tratei-te sempre como se fosses um irmão,
paguei a clínica da tua mulher, os estudos do teu filho doutor, dei-te dadas as
belgas que agora são tuas e tu atreves-te a vir com essa conversa? Dou trabalho
a uma cambada de madraços, achas que me vou embora com medo da tua caçadeira de
chumbar pardais?
Eles
disseram que eu era para dizer: Não, passarão! Tás-me a chamar passarão? Filho
duma égua, cabrão dum corno, paneleiro de mer… Mata-me já, que daqui não arredo
pé, e depois de morto só se quatro homens me levarem como diz o marquês de
Pombal. Esse tal marquês não sei quem é, mas o senhor engenheiro é que é para
sair de hoje a oito dias, são ordens, que eu cá por mim nem me dá jeito perder
o emprego. A gente agora arretira-se em boa ordem e vossemecê pensa o que é
melhor para vossemecê. E tenha muito boas tardes que a gente tem mais montes
para despejar. A minha avó Jacinta saiu a porta com uma enxada e correu-os a
poder de braços, com tal força de argumentação que nunca mais lá puseram os
pés. O Custódio desapareceu da circulação, diz-se que levou um tiro num dos
montes que andou a despejar. Mas o meu avô não se refez. Teve uma pataleta do
coração (frases da avó Jacinta) e ficou desminingúido para o resto da vida. Que
foi curta. Morreu em 1975, em Julho, nove meses antes de 20 de Março de 1976,
que foi o dia em que eu nasci. Feitas as contas e estando os meus pais a
estrear as férias de Verão num hotel do Algarve, como é suposto em pessoas do
seu estatuto económico e social, houve a previsível coincidência da cópula
conjugal (que só viria a repetir-se um mês depois, no final das férias, para
despedida).
Como
o meu avô se passou desta para melhor com a sua segunda pataleta à meia-noite e
quinze, é de supor que a minha mãe, tão cumpridora dos seus deveres de esposa,
estivesse de perna aberta a receber no seu casto seio a semente de mim na hora
em que seu pai desencarnou. Foi nesse instante que me trocaram a alma.
Um
rasgão no peito, uma saudade de mim. E a minha mãe para sempre com aquele
remorso (ela considera que fazer-me foi uma coisa suja) a imaginar, logo à
partida, formas de se redimir, e a primeira, assim que lhe comunicaram que
tivera um rapaz, foi pôr-lhe o nome do morto recente, o meu pai achou Teófilo
mais carismático que João Teófilo, pois bem, deixaram cair o João, mas a
homenagem ao finado era inevitável. Teófilo Deus, pois claro. Nem repararam que
Teófilo quer dizer o que ama Deus (o meu pai é economista), só faltou porem-me
Teófilo Amadeu e lá carrego eu este nome em duplicado, eu, que nem sou
religioso e não é para contrariar a minha mãe. É porque no dia em que acreditar
que há um Deus tenho de lhe pedir contas da minha alma trocada e duvido que ele
saiba responder-me.
Ao
contrário do que diz a Natália Correia, raramente encontro relação entre a
pessoa e o seu nome, essa ligação misteriosa e premonitória, imaginem, a minha
mãe chama-se Generosa (Geni para disfarçar). Punham-me no Alentejo quando iam
viajar, só os dois, felizmente nunca se lembraram de me levar, tudo o que
viajei foi por minha conta e risco, já adulto, e tudo o que não viajei foi
aprendizagem de mim e do universo, foi o silêncio, os cântaros a beberem
avidamente das fontes, o recolher do rebanho, um cão com alma de leader, um
pássaro tardio num desenho de flecha, o meu coração inquieto, uma pedra fechada
na palma da mão. Em contraluz, a Maria vinha devagar, menino Teozinho está a
merenda servida, a avozinha, já sabe, mandou fazer um bolo grande de chocolate
por sua causa e agora quer que o vá comer com ela, sempre alegre a minha
senhora, sempre alegre apesar de tudo, da falta que lhe faz o avôzinho, da
morte do seu tio Emílio na guerra de África, da sua mãezinha que, com sua
licença, não lhe passa cartão, sempre armada em fina e em desocupada das que
não têm tempo para nada, nem para pegar num telefonezinho, salvo seja, e
perguntar a mãe se está viva, vá o menino ter com ela à sala que já lá levo a
bandeja, fiz salada de frutas, vai gostar.
Eu,
doze anos, um rasgão no peito, uma saudade de mim, a pensar em palavras, voo,
regato, antemanhã, tão à espera da minha verdadeira alma, tão à deriva, a
agarrar-me como um náufrago à minha fatia de bolo de chocolate, a pô-la no
prato, a cobri-la de salada de frutas, mais pêssego que pêra, dois cubinhos de
melão e por fim uma ginja em calda, tão bonita, mas que afinal me enjoa e me
faz arrepender. É fácil conversar com a avó Jacinta. É ela que me conta a
história, que considera hilariante, da minha concepção, do meu nascimento, a
Generosa a tapar-se toda para amamentar, e a avó a lembrar-se de como expunha,
às vezes ao sol, os seus belos peitos, fartos de leite, para alimentar os
filhos, nada mais belo que a maternidade, a assunção do corpo, a verdade da
pele voo, regato, antemanhã. Lanchaste bem? Comi de mais, avó». In
Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de
Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.
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