sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Ensaio. 1258-1264. História Política. O Triunfo da Monarquia Portuguesa. José Mattoso. «A escrita foi a arma com que feriu de morte o feudalismo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ora esta imensa revolução abrangeu todo o norte do reino, justamente aquela região em que o poder régio sofria maiores atropelos por parte de leigos e eclesiásticos. No resto do país não eram precisas inquirições. Aí o regime municipal preservara, na prática, as noções de direito público e o rei surgia como o senhor directo da população, apesar das liberdades e privilégios concelhios. Que fez o rei com o resultado dos depoimentos tão escrupulosamente registados pelos seus escrivães em longos rolos de pergaminho? Aparentemente, nada. É uma das surpresas que este período da acção política de Afonso III suscita a quem o examina. O mais irritante, para o historiador, é não saber se este vazio se deve a uma lacuna de informação ou se de facto o rei se limitou a entregar o cadastro ao mordomo-mor para ele saber o que podia exigir aos mordomos locais como pagamento das rendas devidas à coroa. Quem lê hoje o estendal de sonegações feitas pelos senhores locais (ou interpretadas como tal pelos inquiridores) esperaria que o rei tomasse medidas claras e vigorosas para assegurar a eficácia da cobrança. Ora, se alguma coisa mudou, não restam disso vestígios evidentes. Não é impossível que uma análise muito pormenorizada dos actos administrativos revelasse algumas alterações da prática; mas para isso seria necessário proceder a levantamentos minuciosos e sistemáticos sobre centenas ou milhares de documentos. Talvez um dia algum investigador mais escrupuloso e paciente se disponha a tentar esta tarefa de resultados incertos.
Se a documentação actualmente existente é de facto representativa das acções e da política régia, pode então admitir-se que Afonso III se limitou a consolidar as formas de execução prática dos valores ideológicos representados pela escrita e pela imposição da lei, pela fidelidade dos seus representantes locais, pelo respeito a eles devido e pela difusão da noção de representação. Ou seja, por meio de uma política administrativa que não deixou vestígios directos na documentação. Por meio da eficácia burocrática. O mais provável é que se tenha verificado um aperfeiçoamento gradual da máquina administrativa, e não uma mutação brusca. De qualquer modo, o registo por escrito do foros e direitos devidos à coroa dotava o soberano de uma força incomparável. A escrita foi a arma com que feriu de morte o feudalismo. A verdade é que Afonso III pode mesmo ter adoptado uma atitude contemporizadora e aparentemente passiva. O futuro mostraria que, se passividade havia, era apenas aparente, porque a criação do meirinhado-mor, três anos mais tarde, deve certamente considerar-se a efectiva medida tomada como resposta, embora indirecta, à situação revelada pelas inquirições. Até lá pode ter percebido que era preciso não assustar demasiado os seus rivais no exercício do poder local. Passou todo o ano de 1259 e quase todo o de 1260 entre Santarém, Lisboa e Leiria, longe, portanto, do cenário senhorial explorado pelos seus delegados. Talvez pretendesse tranquilizar os senhores leigos e eclesiásticos que viram nas inquirições uma ameaça ao exercício do seu poder nas terras onde dominavam.
Pode ter sido também a estratégia política que inspirou algumas doações a bispos e mosteiros feitas por essa ocasião, como o padroado da igreja de Cantanhede ao mosteiro de Lorvão, a garantia dada ao arcebispo e cabido de Compostela de que os seus domínios em Correlhã não seriam afectados ou a doação do padroado da igreja da Alcáçova de Montemor-o-Velho ao bispo Egas Coimbra. Estas provas de liberalidade para com a Igreja, todavia, não representam nenhuma generosidade excepcional e, de resto, não aumentam durante os anos de 1259 e de 1260. Já antes tinha feito algumas. O solene documento datado de 2 de Julho de 1259 em favor do mosteiro de Alcobaça justifica-se pelo motivo da ampliação ou alargamento do meu reino e do castelo de Marvão, pois se tratava de trocar a herdade da Aramenha que os monges entregaram em troca de um reguengo em Beringel, que o rei posteriormente havia de coutar em seu favor. Afonso III garantia, assim, a posse directa das terras junto ao castelo de Marvão, cujo papel na defesa da fronteira era importante». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.

Cortesia de RAnáliseSocial/JDACT