sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Ensaio. 1258-1264. História Política. O Triunfo da Monarquia Portuguesa. José Mattoso. «A lei deixa de ser aquela que o senhor dita por meio do seu banus e como intérprete incontestado do costume»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O rei deve ter querido acompanhar de perto as primeiras e certificar-se de que o grupo de inquiridores não seria atacado pelos nobres e cavaleiros de Entre Douro e Minho e da Beira. A eventualidade era real porque no reinado anterior muitos juízes e mordomos régios tinham sido mortos, mutilados ou espancados por tentarem cobrar os direitos do soberano. Por isso permaneceu com a sua corte em Guimarães, em Braga e no Porto desde 30 de Março até ao fim de Julho. Neste mês, verificando que até ali tudo tinha decorrido pacificamente, dirigiu-se a Coimbra e Leiria, onde passou o resto do Verão e o Outono. Luís Krus, num estudo fundamental, mostrou como as inquirições de 1258 representam uma autêntica revolução em termos políticos, sociais e mentais. Ao confiar a missão a letrados, Afonso III impõe ao meio rural e senhorial um sistema de valores que tem na lei, na escrita e na representação política os seus mais fortes apoios ideológicos. É nestes apoios que se baseia a administração régia para se impor como instância decisória acima das comunidades locais regidas por costumes transmitidos oralmente e sujeitos à arbitrariedade dos senhores nobres e eclesiásticos. O rei deixa de aparecer como um longínquo representante de Deus encarregado de assegurar a paz e a justiça para se apresentar como aquele que dita a lei e a faz cumprir independentemente de poderes, costumes e privilégios locais.
O novo sistema de valores não se difunde por meio de qualquer propaganda doutrinal, mas por meio da acção prática e do exemplo dado por quem demonstra competência para o fazer. É uma prática que [serve] de exemplo, em primeiro lugar, aos funcionários régios locais: deixam de estar à mercê das humilhações perpetradas pelos senhores locais para poderem reivindicar uma autoridade da mesma natureza e emanada da mesma fonte que os próprios inquiridores, aquela que eles exerciam com tanta confiança em si mesmos. Ser funcionário régio passa também a significar o saber, o prestígio, o fascínio da detenção da memória. A acção prática executada pelos inquiridores constitui para toda a população anúncio de uma atitude inaudita. Era como se a sua viagem fosse uma espécie de missão para proclamar a boa nova, anunciando o fim da arbitrariedade e das violências que tinham dominado os vinte anos do reinado anterior. Ora a mensagem chegava a todas as freguesias e envolvia directamente a maioria da população local, mesmo os mais pobres. Para se compreender a sua amplitude basta dizer que só em Entre Douro e Ave foram directamente inquiridas 3414 testemunhas. Em certos julgados mais populosos, como os da Maia e de Guimarães, ouviram-se mais de 500 testemunha. A demonstração foi, portanto, sistemática, abrangente e espectacular. Os camponeses acostumados a práticas tão diferentes não podiam esquecê-la facilmente.
Em terceiro lugar, as insistentes perguntas dos inquiridores demonstravam que não bastava o consenso comunitário para legitimar os usos e direitos. Era preciso consigná-los por escrito. ao arbítrio pessoal, aos acordos orais facilmente esquecidos e violentados, devem substituir-se os contratos jurídicos. A lei deixa de ser aquela que o senhor dita por meio do seu banus e como intérprete incontestado do costume. Tem de estar fixada em pergaminhos que desafiam o tempo e permanecem iguais para além da morte de quem os lê. Finalmente, a missão dos inquiridores torna-se uma demonstração prática de que entre o rei e a população passará a interpor-se a representação; e quem a irá assegurar não vão ser os ricos-homens governadores das terras, que exerciam o seu poder em nome próprio, mas os funcionários e letrados, a aristocracia cortesã. O rei passará a viajar muito menos. Deixa de surgir como uma visita do céu para repor a justiça e a paz, mas passa a estar presente, sempre e em toda a parte, por intermédio dos que ele coloca em cada circunscrição territorial para impor a sua vontade e fazer cumprir a lei». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.

Cortesia de RAnáliseSocial/JDACT