«Um não sei quê
que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In
Luís de Camões
«(…) Talvez que,
depois daqueles milhares de anos longos em que o tempo era o seu próprio
embrião, o primeiro milénio da nossa era fosse a infância do tempo. Naquele
século catorze que tantas vezes se me torna presente, encontro a demora da
adolescência da história, o tempo detendo-se na penumbra dos castelos de pedra.
No final do século vinte, que me trouxe a este cativeiro, descubro um ritmo
diferente, mais vivo, mais rápido. Mas no princípio do século vinte e dois que
agora frequentemente me aparece, tudo se passa em clarões velocíssimos numa sucessão
de imagens iluminadas a azul-gelo, azul-inquietação, azul-miragem, como se o
tempo tivesse envelhecido e estivesse com pressa de morrer. Estou louco, dirão.
Sim, estou louco, já que chamam loucura a qualquer comportamento menos
convencional ou sempre que a nossa mente tem acesso a um pouco mais do que à
trivialidade estabelecida. Anda, vadio. Hoje vais comer ao refeitório. Já sabes
que à mais pequena confusão...
Mas eu estou
calmo. Estou a pensar nisto do tempo, estou a viajar dentro da minha cabeça e,
excepcionalmente, estou com fome. Sinto falta de comer sentado à mesa, o prato
na mão corta-me o apetite. Há caldo, a que eles chamam verde, mas onde as
couves são castanhas. Há batatas guisadas com toucinho que uma vez por outra
traz um pouco de carne entremeada e é bom. Tem molho e deram-me uma boa fatia
de pão. E quando estou a limpar o prato como se tivesse que devolvê-lo lavado,
vem-me tudo à ideia. A primeira imagem é a do oficial de ligação entre o SPP e
os serviços prisionais, a dizer, levem-no, levem-no, não me façam perder tempo
com o que já está decidido. Porque eu errei. Pequei contra o Planeta.
Este é um tempo
em que os Governos da Terra decidiram que todos os males do mundo advêm do
excesso de população. Refiro-me aos Governos Continentais donde emanam decisões
que globalizam toda a legislação relativa à protecção do Planeta Terra. As
crianças aprendem na escola que é preciso escolher entre o Homem e a Natureza,
e ao escolhermos a Natureza estamos a salvar o Homem. Por mais cruel que isso
seja para o indivíduo, acabaram-se os tempos bárbaros em que os interesses
pessoais se sobrepunham à salvação da Terra. Esta doutrina intitula-se
Salvismo. Agora o Planeta é o deus a quem todos devemos sacrificar. Por isso as
leis são inexoráveis. Pena de morte para quem poluir as águas, derrubar
árvores, incendiar florestas, matar animais ou os mutilar. Pena de morte para
quem lançar qualquer espécie de substância poluente na atmosfera. Pena de morte
para quem se reproduzir fora do sistema. Há, evidentemente, regras muito
estritas para a criação e abate de espécies para alimentação dos humanos.
Cedências no que se refere a bens de primeira necessidade. A vida tornou-se
simples, próxima da natureza: estimula-se o artesanato, encoraja-se o
despojamento. Mas isso só é possível com a redução drástica da população, para
que se possa acabar com o abate de árvores, a industrialização, a construção
desenfreada, o exaurimento dos recursos naturais.
Os Governos
Nacionais orgulham-se das suas estatísticas que revelam diminuição progressiva
da população que, com o tempo irá atingir a quota proposta de 20%. As medidas
foram implementadas nos meados do século XXI, nem sequer passaram os cem anos
das previsões, apenas cerca de setenta, pois estamos ainda no primeiro quartel
do século XXII. Eu nasci em Dezembro de 2084, sou adulto na minha rememoração
dos acontecimentos. Chamo-me Pedro Rey e negoceio em madeiras. É uma profissão
trabalhosa, mas que me proporciona um nível de vida razoável. Dada a proibição
de abater uma árvore que seja, a madeira tornou-se preciosa e atinge por vezes
preços muito interessantes. Mas há que recuperá-la das demolições das cidades
grandes. Isto é. As cidades periféricas, as zonas-dormitório, deixaram de
existir porque a população diminui cada vez mais. E muitos dos habitantes das
cidades, entusiasmados com os vantajosos apoios que lhes são propostos, optaram
por ir viver em pequenas comunidades nos campos, aldeias verdejantes espalhadas
por todo o país. Lisboa pouco ultrapassa o Lumiar, Benfica, Monsanto, o Porto
fica-se pela Foz, Campanhã e São Mamede. Tudo o resto tem sido sistematicamente
demolido para que, uma vez os terrenos limpos e tratados, se possam plantar
florestas e jardins. Respeitam-se os edifícios que pela sua arquitectura ou
valor histórico mereçam ser preservados e que passam a erguer-se entre
frondosas matas em vez de continuarem a ombrear com dependências de bancos e
lojas de quinquilharias. Portugal tornou-se mais bonito. E a Natureza,
apaziguada, fez uma trégua na sua profusão de catástrofes e epidemias. Mas não.
Ainda não é o paraíso». In Rosa Lobato Faria, A Trança de Inês,
Círculo de Leitores, cortesia de ASA Editores, 2005, ISBN 978-989-660-034-1.
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