«(…) Ora, o nome próprio, nesse
jogo, não passa de um artifício: permite mostrar com o dedo, quer dizer, fazer
passar sub-recpticiamente do espaço onde se fala para o espaço onde se olha,
isto é, ajustá-los comodamente um sobre o outro como se fossem adequados. Mas,
se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se
quiser falar não de encontro a, mas a partir da sua incompatibilidade, de maneira
que se permaneça o mais próximo possível de uma e de outro, é preciso então pôr
de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa. É, talvez, por
intermédio dessa linguagem nebulosa, anónima, sempre meticulosa e repectitiva,
porque demasiado ampla, que a pintura, pouco a pouco, acenderá as suas luzes. É
preciso, pois, fingir não saber quem se reflectirá no fundo do espelho e interrogar
esse reflexo ao nível da sua existência. De início, ele é o verso da grande
tela representada à esquerda. O verso ou, antes, a face dianteira, pois que
mostra de frente o que ela, por sua posição, esconde. Ademais, opõe-se à janela
e a reforça. Como ela, é um lugar-comum ao quadro e ao que lhe é exterior. A
janela, porém, opera pelo movimento contínuo de uma efusão que, da direita para
a esquerda, agrega às personagens atentas, ao pintor, ao quadro, o espectáculo
que contemplam; já o espelho, por um movimento violento, instantâneo e de pura
surpresa, vai buscar, à frente do quadro, aquilo que é olhado mas não visível,
a fim de, no extremo da profundidade fictícia, torná-lo visível mas indiferente
a todos os olhares. O pontilhado imperioso que está traçado entre o reflexo e o
que ele reflecte corta perpendicularmente o fluxo lateral da luz. Enfim, e é a
terceira função desse espelho, ele põe em paralelo uma porta que, como ele, se
abre na parede do fundo. Também ela recorta um rectângulo claro, cuja luz fosca
não se irradia pela sala. Não passaria de uma placa dourada, não estivesse ela
aberta para fora através de um batente esculpido, da curva de uma cortina e da
sombra de vários degraus. Aí começa um corredor; mas, em vez de se perder em
meio à obscuridade, ele se dissipa num brilho amarelo, cuja luz, sem entrar,
rodopia em torno de si mesma e repousa. Sobre esse fundo, ao mesmo tempo
próximo e sem limite, um homem destaca a sua alta silhueta; ele é visto de
perfil; com uma das mãos retém o peso de um cortinado; seus pés estão pousados
sobre dois degraus diferentes; tem o joelho dobrado. Talvez vá entrar na sala;
talvez se limite a espiar o que se passa no interior, contente de surpreender
sem ser observado. Tal como o espelho, fixa o verso da cena: tanto quanto ao
espelho, ninguém lhe presta atenção.
Não se sabe donde vem; pode-se
supor que, seguindo por incertos corredores, contornou a sala onde as
personagens estão reunidas e onde trabalha o pintor; talvez estivesse, há
pouco, também ele à frente da cena, na região invisível que é contemplada por
todos os olhos do quadro. Como as imagens que se distinguem no fundo do
espelho, é possível que ele seja um emissário desse espaço evidente e escondido.
Há, no entanto, uma diferença: ele está ali em carne e osso; surgiu de fora, no
limiar da área representada; ele é indubitável, não um reflexo provável, mas
uma irrupção. O espelho, fazendo ver, para além mesmo dos muros do ateliér, o
que se passa à frente do quadro, faz oscilar, na sua dimensão sagital, o interior
e o exterior. Com um pé sobre o degrau e o corpo inteiramente de perfil, o visitante
ambíguo entra e sai ao mesmo tempo, num balancear imóvel. Ele repete, sem sair
do lugar, mas na realidade sombria do seu corpo, o movimento instantâneo das
imagens que atravessam a sala, penetram no espelho, nele se reflectem e dele ressaltam
como espécies visíveis, novas e idênticas. Pálidas, minúsculas, essas silhuetas
no espelho são recusadas pela alta e sólida estatura do homem que surge no vão
da porta.
Cumpre, no entanto, retornar do
fundo do quadro em direcção à frente da cena; é preciso abandonar esse circuito
cuja voluta se acaba de percorrer. Partindo do olhar do pintor que, à esquerda,
constitui como que um centro deslocado, distingue-se primeiro o reverso da
tela, depois os quadros expostos, com o espelho no centro, a seguir a porta
aberta, novos quadros, cuja perspectiva, porém, muito aguda, só deixa ver as
molduras na sua densidade, enfim, à extremidade direita a janela, ou, antes, a fenda
por onde se derrama a luz. Essa concha em hélice oferece todo o ciclo da representação:
o olhar, a palheta e o pincel, a tela inocente de signos (são os instrumentos materiais
da representação), os quadros, os reflexos, o homem real (a representação
acabada, mas como que afastada dos seus conteúdos ilusórios ou verdadeiros que
lhe são justapostos); depois, a representação se dilui: só se vêem as molduras
e essa luz que, do exterior, banha os quadros, os quais, contudo, devem em troca
reconstituir à sua própria maneira, como se ela viesse de outro lugar, atravessando
suas molduras de madeira escura». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas,
1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.
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