sexta-feira, 25 de agosto de 2017

As Ondas Virgínia Woolf. «O Louis escreve; a Susan escreve; o Neville escreve; a Jinny escreve; até mesmo o Bernard começou agora a escrever»

jdact

«(…) Onde é que está o Bernard?, disse Neville. É ele quem tem a minha faca. Estávamos na arrecadação a fazer barcos, e foi então que a Susan passou. O Bernard deixou cair o barco e foi atrás dela com a minha faca, aquela que é muito afiada e serve para talhar as quilhas. Ele é como um fio muito esticado, sempre a estremecer. É como as algas que estão penduradas do lado de fora da janela, ora húmidas ora secas. Deixa-me sozinho, vai atrás da Susan; e, se ela gritar, ele pega na minha faca e conta-lhe histórias. A lâmina grande é um imperador; a lâmina quebrada um negro. Odeio coisas que estremecem; odeio coisas escorregadias. Odeio delírios e misturas. A campainha está a tocar e vamos chegar atrasados. Temos de poisar os brinquedos. Temos de entrar ao mesmo tempo. Os livros estão arrumados lado a lado, em cima da mesa forrada a baeta verde. Só conjugarei o verbo depois de o Bernard o ter dito, disse Louis. O meu pai é banqueiro em Brisbane e eu falo com sotaque australiano. Vou esperar e imitar o Bernard. Ele é inglês. Eles são todos ingleses. O pai da Susan é vigário. A Rhoda não tem pai. O Bernard e o Neville são filhos de cavalheiros. A Jinny vive em Londres com a avó. Estão todos a morder as canetas. Agora, estão a virar os livros, e, olhando de esguelha para miss Hudson, contam-lhe os botões vermelhos do corpete. O Bernard tem um raminho no cabelo. Os olhos da Susan estão vermelhos. Ambos estão corados. Mas eu estou pálido; estou limpo; e as minhas calças de golfe estão bem apertadas com um cinto com uma cobra de bronze. Sei a lição de cor. Sei mais do que aquilo que eles alguma vez saberão. Sei os casos e os gêneros; podia aprender tudo e mais alguma coisa se quisesse. Mas eu não quero emergir e dizer a lição. Tal como fibras num vaso de flores, as minhas raízes enrolam-se em torno do mundo. Não quero emergir e viver à luz deste enorme relógio amarelo que não pára de fazer tiquetaque-tiquetaque. A Jinny e a Susan, o Bernard e o Neville, juntam-se e transformam-se numa correia pronta para me chicotear. Riem-se por eu ser tão arrumado, por falar com sotaque australiano. Vou tentar imitar o Bernard com os seus ceceios em latim.
Tratam-se de palavras brancas, disse Susan, iguais às pedras que apanhamos à beira-mar. À medida que as pronuncio, batem como caudas, ora à esquerda ora à direita, disse Bernard. Abanam as caudas; fazem-nas estalar; movem-se em bandos pelo ar, agora nesta direcção, agora naquela, agora em conjunto, agora separando-se, agora voltando a juntar-se. São palavras que queimam, são palavras amarelas, disse Jinny. Gostava de ter um vestido quente, um vestido amarelo, para usar à noite. Cada forma verbal, disse Neville, tem um significado diferente. O mundo tem uma ordem; existem distinções; existem diferenças neste mundo em cuja margem tropeço. Trata-se apenas do começo. A Miss Hudson acabou de fechar o livro, disse Rhoda. Está a começar o terror. Agora, pega no giz e começa a desenhar números, seis, sete, oito, e depois uma cruz e só então uma linha. Está tudo no quadro. Qual é a resposta? Os outros olham, olham com ar de quem compreende. O Louis escreve; a Susan escreve; o Neville escreve; a Jinny escreve; até mesmo o Bernard começou agora a escrever. Todavia, eu não consigo. Apenas vejo números. Um a um, os outros vão entregando as respostas. Chegou a minha vez. Só que não tenho respostas. Os outros tiveram autorização para sair. Deixaram-me sozinha para que encontrasse resposta. Os números não têm qualquer sentido. O sentido desapareceu. O relógio faz tiquetaque. Os dois ponteiros são como caravanas a atravessar o deserto. As barras negras no mostrador são como oásis verdes. O ponteiro maior antecipou-se para ir buscar água. O outro, dolorosamente, vai tropeçando por entre as pedras quentes. Acabará por morrer no deserto. A porta da cozinha bate. Os cães vadios ladram lá longe. Reparem, a forma redonda do número começa a encher-se com o tempo; o mundo está todo lá contido. Comecei a traçar um número, o mundo está lá dentro e eu estou fora do laço. Acabo por o fechar, assim, selando-o, tornando-o inteiro. O mundo está completo e eu estou de fora, a gritar: oh, salvem-me, salvem-me de ser afastada para sempre do laço do tempo!». In Virgínia Woolf, 1931, colecção Mil Folhas, Relógio d’ Água, 2002, 2015, ISBN 978-989-641-526-6.

Cortesia de Relógiod’Água/JDACT