domingo, 27 de agosto de 2017

A Princesa Traída por Pedro e Inês. Isabel Machado. «… desfez o tratado, quebrando a honra da palavra dada e o juramento perante as Cortes. E assim fez. Repudiou-me…»

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Constança
Castelo de Toro, Castela, 1328
«(…) A magnificência era o mundo que me rodeava. Para o Castelo de Toro, um importante centro de defesa da corte de Castela e do rei, Afonso XI, convergiam embaixadas do papa e dos monarcas de toda a Península e dos reinos cristãos europeus. À minha mesa serviam-se bandejas com as melhores viandas e manjares. Faziam-se de vénias fundas os cumprimentos que me eram dirigidos. Não era surpreendente esta postura. Eu fora rainha de Castela desde os 7 anos, mulher de Afonso XI, com esponsais ratificados nas Cortes de Valladolid, onde houve dias de pompa e festa de rua. Eram-me devidas todas as honrarias como esposa de um dos mais poderosos e temidos reis da Ibéria. Mas estes factos, verdadeiros, não tinham quaisquer direitos sobre a realidade. Porque eu era refém do rei, prisioneira no castelo. Carregava uma coroa que nunca vira e desposara um homem que jamais me faria mulher. Afonso XI congeminara este casamento para travar a revolta de meu pai, Juan Manuel, neto, sobrinho e primo de reis de Castela, príncipe de Vilhena e senhor de Peñafiel, o nobre e académico mais prestigiado do reino, primo e tutor do monarca, que o afastara mal atingira a maioridade e se sentara no trono.
O logro do matrimónio ludibriou meu pai algum tempo, tão grato lhe era o poder. Acreditou, como um principiante, que alastraria ainda mais o seu já imenso domínio nas terras de Castela, com a filha sentada no trono. Mas o desengano foi terrível, e não tardou a ser conhecida a verdadeira intenção do rei castelhano, meu marido: obter a mão da sua prima direita, a infanta Maria de Portugal, filha do rei Afonso IV e de Beatriz de Castela, uma aliança muito mais proveitosa para consolidar o seu poder na Ibéria e perante as facções da nobreza castelhana que o queriam fora do trono. Afonso XI era familiar dos reis de Portugal pelos dois lados da família; filho da irmã de Afonso IV, dona Constança e do irmão de dona Beatriz, o rei Fernando IV de Castela. A ligação com Portugal também o auxiliaria no combate aos mouros, que ainda permaneciam no reino de Granada, uma ameaça latente. Era esta, pelo menos, a sua convicção quando desfez o tratado, quebrando a honra da palavra dada e o juramento perante as Cortes. E assim fez. Repudiou-me, casou com a infanta de Portugal, atirando-me como refém para o Castelo de Toro, para impedir a retaliação de meu pai.
Se o orgulho de Juan Manuel ficou ferido, jamais o mostrou, mas o desejo de vingança foi bem perceptível, com o ódio visceral como só os laços familiares alcançavam. Guardei para mim a minha humilhação, calando que não existe maior vexame para uma mulher do que o repúdio do seu esposo, mesmo que não o seja ainda pela carne. O que se manteve intacta foi a minha determinação de vir a libertar-me desta existência atormentada. O meu curto passado narrava ainda o assassínio do meu primeiro noivo, aliado de meu pai contra o rei, por ordem de Afonso XI. Não me tornei ainda mulher, mas a minha aprendizagem ensinou-me a encobrir os pensamentos, mal aprendi a falar. O poder costumava cegar, e aquela vez não foi uma excepção. Afonso XI avaliara mal o alcance da influência de Juan Manuel, o único homem, em toda a Ibéria, com poder para arrancar do trono o monarca castelhano.
A ira de meu pai tornara-se mais funda pela traição do rei de Portugal. Mais violenta. Afastado e ludibriado pelo rei castelhano, que ajudara a criar, e pelo velho amigo português dos tempos da juventude, meu pai seria agora capaz de tudo. E sabia que podia contar com o meu auxílio. Eu não lhe falharia, apesar do medo que me provocava o ódio que lhe passava pelos olhos. Mas só ele me poderia salvar. Eu intuíra cedo que nada é impossível quando a ambição tomava conta de alguém. Meu pai precisava apenas de um novo aliado. Mas não de um aliado qualquer». In Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.

Cortesia de EdosLivros/JDACT