Constança
Castelo
de Toro, Castela, 1328
«(…) A magnificência era o mundo
que me rodeava. Para o Castelo de Toro, um importante centro de defesa da corte
de Castela e do rei, Afonso XI, convergiam embaixadas do papa e dos monarcas de
toda a Península e dos reinos cristãos europeus. À minha mesa serviam-se
bandejas com as melhores viandas e manjares. Faziam-se de vénias fundas os
cumprimentos que me eram dirigidos. Não era surpreendente esta postura. Eu fora
rainha de Castela desde os 7 anos, mulher de Afonso XI, com esponsais
ratificados nas Cortes de Valladolid, onde houve dias de pompa e festa de rua.
Eram-me devidas todas as honrarias como esposa de um dos mais poderosos e
temidos reis da Ibéria. Mas estes factos, verdadeiros, não tinham quaisquer
direitos sobre a realidade. Porque eu era refém do rei, prisioneira no castelo.
Carregava uma coroa que nunca vira e desposara um homem que jamais me faria mulher.
Afonso XI congeminara este casamento para travar a revolta de meu pai, Juan
Manuel, neto, sobrinho e primo de reis de Castela, príncipe de Vilhena e senhor
de Peñafiel, o nobre e académico mais prestigiado do reino, primo e tutor do
monarca, que o afastara mal atingira a maioridade e se sentara no trono.
O logro do matrimónio ludibriou
meu pai algum tempo, tão grato lhe era o poder. Acreditou, como um
principiante, que alastraria ainda mais o seu já imenso domínio nas terras de
Castela, com a filha sentada no trono. Mas o desengano foi terrível, e não
tardou a ser conhecida a verdadeira intenção do rei castelhano, meu marido:
obter a mão da sua prima direita, a infanta Maria de Portugal, filha do rei
Afonso IV e de Beatriz de Castela, uma aliança muito mais proveitosa para
consolidar o seu poder na Ibéria e perante as facções da nobreza castelhana que
o queriam fora do trono. Afonso XI era familiar dos reis de Portugal pelos dois
lados da família; filho da irmã de Afonso IV, dona Constança e do irmão de dona
Beatriz, o rei Fernando IV de Castela. A ligação com Portugal também o
auxiliaria no combate aos mouros, que ainda permaneciam no reino de Granada,
uma ameaça latente. Era esta, pelo menos, a sua convicção quando desfez o
tratado, quebrando a honra da palavra dada e o juramento perante as Cortes. E
assim fez. Repudiou-me, casou com a infanta de Portugal, atirando-me como refém
para o Castelo de Toro, para impedir a retaliação de meu pai.
Se o orgulho de Juan Manuel ficou
ferido, jamais o mostrou, mas o desejo de vingança foi bem perceptível, com o
ódio visceral como só os laços familiares alcançavam. Guardei para mim a minha
humilhação, calando que não existe maior vexame para uma mulher do que o repúdio
do seu esposo, mesmo que não o seja ainda pela carne. O que se manteve intacta
foi a minha determinação de vir a libertar-me desta existência atormentada. O
meu curto passado narrava ainda o assassínio do meu primeiro noivo, aliado de
meu pai contra o rei, por ordem de Afonso XI. Não me tornei ainda mulher, mas a
minha aprendizagem ensinou-me a encobrir os pensamentos, mal aprendi a falar. O
poder costumava cegar, e aquela vez não foi uma excepção. Afonso XI avaliara
mal o alcance da influência de Juan Manuel, o único homem, em toda a Ibéria,
com poder para arrancar do trono o monarca castelhano.
A ira de meu pai tornara-se mais
funda pela traição do rei de Portugal. Mais violenta. Afastado e ludibriado
pelo rei castelhano, que ajudara a criar, e pelo velho amigo português dos
tempos da juventude, meu pai seria agora capaz de tudo. E sabia que podia
contar com o meu auxílio. Eu não lhe falharia, apesar do medo que me provocava o
ódio que lhe passava pelos olhos. Mas só ele me poderia salvar. Eu intuíra cedo
que nada é impossível quando a ambição tomava conta de alguém. Meu pai
precisava apenas de um novo aliado. Mas não de um aliado qualquer». In
Isabel Machado, Constança, A Princesa Traída por Pedro e Inês, A Esfera dos
Livros, 2015, ISBN 978-989-626-718-6.
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