terça-feira, 29 de agosto de 2017

A Guerra da Duquesa. Courtney Milan. «A luz da rua lançava sombras imóveis sobre o pavimento. Alguém tinha empilhado um montão de folhetos contra a porta, mas a brisa outonal os tinha espalhado pela rua»

jdact

Leicester, Novembro de 1863
«Robert Blaisdell, nono duque de Clermont, não se escondia. Era certo que tinha subido à biblioteca da Casa do Conselho, que se tinha afastado bastante da multidão em baixo, de modo que o ruído tinha-se convertido num retumbar distante. E era certo que não havia mais ninguém por ali. E que estava de pé atrás de grossas cortinas de veludo azul cinzento que o ocultavam da vista. Como também era certo que, para chegar ali, tinha tido que mover o velho sofá de couro marrom.  Mas não tinha feito tudo isso para se esconder, mas sim porque, e isso era um ponto chave na sua linha de pensamento lógico, naquela sala centenária de madeira e gesso apenas uma das folhas da janela se abria e, casualmente, era a que ficava escondida atrás do sofá. Ali estava, cigarro em mãos, com a fumaça elevando-se no frio ar outonal. Não se escondia, só tentava preservar da fumaça os livros antigos.
Uma desculpa na qual possivelmente ele mesmo teria acreditado... Se fosse fumante. Através do cristal velho podia distinguir a pedra escurecida da igreja situada justo em frente. A luz da rua lançava sombras imóveis sobre o pavimento. Alguém tinha empilhado um montão de folhetos contra a porta, mas a brisa outonal os tinha espalhado pela rua e jogados nas poças d'água. Aquilo era um desastre. Um condenado desastre. Robert sorriu e golpeou a ponta do cigarro contra a janela, lançando cinzas nas pedras em baixo. O fraco rangido de uma porta, abrindo-se, sobressaltou-o. Voltou-se ao ouvir o ruído das tábuas de madeira do chão. Alguém tinha subido as escadas e tinha entrado na biblioteca. Os passos eram leves…, de mulher, possivelmente, ou de um menino. Também eram estranhamente hesitantes. A maioria das pessoas que subia à biblioteca no meio de um sarau musical tinha um motivo para fazê-lo. Um encontro clandestino, talvez, ou a busca por um parente perdido.
De seu lugar privilegiado atrás das cortinas, Robert podia ver apenas uma parte da sala. A pessoa em questão se aproximou mais, com passos ainda hesitantes. Não podia vê-la, mas a ouvia deter-se frequentemente para examinar o que a rodeava. Não chamava a ninguém nem fazia uma busca decidida. Não parecia estar à procura de um amante oculto. Mas os seus passos davam a volta em torno da sala. Robert demorou meio minuto em dar-se conta de que tinha esperado muito para anunciar a sua presença. Oh!, podia dizer. Estava admirando o gesso. Está muito bem posto neste lado, não lhe parece? A mulher, pois Robert estava seguro de que era uma mulher, o tomaria por louco. E até ao momento, ninguém tinha chegado ainda a essa conclusão. Assim, em vez de falar, jogou o cigarro pela janela e este caiu com a ponta laranja brilhante para o chão até que aterrou numa poça e se apagou.
Quão único via do cómodo era meia estante de livros, a parte traseira do sofá e, ao lado, uma mesa com um jogo de xadrez em cima. O jogo estava iniciado. Pelo pouco que recordava Robert das regras, estavam a ganhar as negras. A visitante se aproximou e Robert encostou-se mais à janela. Ela entrou no seu campo de visão. Não era uma das jovens às quais tinha visto antes no salão. Essas eram todas belezas que esperavam que prestassem atenção nelas. E a visitante, quem quer que fosse, não era uma beleza. Levava o cabelo moreno recolhido num rolo na nuca. Os seus lábios eram finos; e o seu nariz, afilado e um pouco grande. Usava um vestido azul-escuro com cós de cor de marfim, sem rendas nem laços, só de tecido singelo. Até o corte do vestido parecia severo: uma cintura tão apertada que Robert não sabia como podia respirar e umas mangas que caíam dos ombros até aos pulsos sem nenhuma sobra de tecido de enfeite que suavizasse a imagem. Não viu Robert atrás da cortina. Tinha inclinado a cabeça de lado e contemplava o jogo de xadrez com a mesma expressão com a qual um membro da Liga da Moderação olharia uma garrafa de brandy, como se fosse um diabo ao qual teria que espantar com orações e hinos. Ou, na sua falta, com a lei marcial». In Courtney Milan, A Guerra da Duquesa, Edições ASA, 2017, ISBN 978-989-233-743-2.

Cortesia de EASA/JDACT