«(…) Foram companheiros d e viagem do vice-rei o desembargador Manuel
Martins Madeira, que serviu de auditor da armada, alguns nobres e vários padres
franciscanos, dominicanos e vinte e cinco jesuítas, alguns deles franceses e
italianos. Entre estes registe-se a presença de Manuel Godinho, autor da Relação
do Novo Caminho que fez por terra e mar vindo da Índia para Portugal no ano de 1663
e que será o pregador da festa de São João. Se bem que a mortalidade tivesse
sido reduzida, pelo menos na nau do vice-rei, da qual nos chegou melhor
conhecimento, nem por isso ela foi inexistente. Registaram-se seis mortes que
atingiram dois grumetes e três soldados; dois destes vinham presos do Limoeiro
e, ao que parece, já doentes; mas também um pajem de 12 anos conheceu a morte
no mar, não tendo tido a sorte de poder agarrar-se a um balde, como
anteriormente lhe acontecera. Melhor sorte teriam dois pajens e outros tantos
soldados que, caídos no mar, conseguiram salvar-se agarrando-se a tábuas, a um
cabo da popa, ao balde de tirar água do mar ou porque socorridos por um batel.
Também a queda na própria nau, ou o disparo fortuito fizeram aumentar o número
de acidentes.
Refere
Tissanier que o cômputo de mortos nas naus Santíssimo Sacramento e Bom
Jesus não terá ultrapassado as duas dezenas, enquanto no galeão São
Francisco se ficara pelos sete elementos: cinco de doença e duas crianças
que morreram afogadas. De um acidente vascular faleceria, no mesmo galeão, o
dominicano António Cruz de cerca de 50 anos de idade. Apesar do elevado número
de pessoas que viajaram nesta armada, talvez pela curta permanência na zona das
calmarias, pela relativa rapidez da viagem e pelas condições a bordo, o número
de doentes não foi dos mais elevados. À chegada a Goa dariam entrada no
hospital cerca de centena e meia. Na Bom Jesus da Vidigueira, onde havia
maior população, mas talvez pelas suas eventuais melhores condições, sairiam
apenas vinte necessitados de cuidados médicos. O escorbuto atingiu pelo menos um
soldado e outro tripulante desta nau e, na altura da terra do Natal, vários
marinheiros encontravam-se doentes. No galeão São Francisco alguns
tripulantes passaram por enfermidades, levando o seu capitão a solicitar a
substituição, pedido que o vice-rei não quis satisfazer de imediato, por se
estar a debater com a mesma dificuldade.
Na
almiranta, o mestre é acometido de maleita e é pedida a presença do médico. Mas
como este não se achasse bem de saúde, optou-se por evacuá-lo para a Bom Jesus,
recebendo aqui o necessário apoio. Posteriormente o seu capitão-mor, António Sousa
Meneses, passou por grave e prolongada doença de estômago, com sangrias sucessivas,
deixando o vice-rei em cuidados. Apressou-se, assim, a mandá-lo visitar por um
criado com alguns mimos, enviando-lhe também o médico e, posteriormente, os
medicamentos por este solicitados. Rodrigo Lobo Silveira parece ter gozado
sempre de boa saúde na viagem. Aliás, tendo por costume, na Primavera e no
Outono, tomar um purgante, não o dispensou a bordo.
O
quotidiano a bordo da carreira da Índia é assunto sobre o qual vários
historiadores se têm debruçado fixando-se, sobretudo, no século XVI, época em
que as fontes são mais abundantes e ricas. Todavia, se uma viagem nunca é igual
a outra, importará determo-nos sobre dois ou três aspectos desse quotidiano
referidos neste diário: a prática e os festejos religiosos, os passatempos e os
conflitos. A armada largou de Lisboa em terça-feira de Semana Santa e, conhecidas
as dificuldades já referidas da partida, só na quinta-feira de Endoenças se
rezaram as primeiras missas a bordo, até porque este era também o dia da invocação
de Nossa Senhora da Encarnação. Não é, por isso, de estranhar, que as
tradicionais cerimónias não tivessem ocorrido com o esplendor de outrora. No sábado
teve lugar a missa de Aleluia, finda a qual o vice-rei mandaria atirar três peças.
E, por ter percebido que parte da população de bordo não se havia confessado
previamente, como era seu dever, ordenou que todos o fizessem nesse dia. O
domingo de Páscoa também seria assinalado com a celebração de missas». In
Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do Estado da
Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses, 2001,
ISBN 972-787-052-X.
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