quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O Harém de Kadafi. Annick Cojean. «Frequentávamos a mesma escola, e da parte dele eu sentia um misto de protecção e ciúme. Eu lhe servia como mensageira para possíveis namoradinhas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu corria para lá logo que a aula terminava. Ali, eu renascia. Que prazer eu tinha! Primeiro, por ajudar a mãe, o que era delicioso. Depois, porque gostava do trabalho. Minha mãe não parava, passava de uma cliente para outra, mesmo tendo quatro funcionárias. Fazíamos cabelo, estética, maquiagem... E definitivamente posso dizer que, em Sirte, as mulheres, por mais que se escondam atrás do véu, têm sofisticação e exigência incríveis. A minha especialidade era depilação de rosto e sobrancelha com fio de seda, sim, um simples fio que eu enlaçava entre os dedos e movimentava bem rápido para arrancar os pelos. Bem melhor que pinça ou cera. E então eu preparava o rosto para a maquiagem, passava base; minha mãe fazia a parte mais geral, trabalhava os olhos, daí chamava: Soraya! O toque final! Então eu passava o batom, dava uma olhada no conjunto e acrescentava uma gota de perfume.
O salão logo se tornou o ponto de encontro das mulheres chiques da cidade. Portanto, daquelas do clã de Kadafi. Quando havia eventos internacionais em Sirte, mulheres de diferentes delegações vinham-se embelezar, esposas de presidentes africanos, de chefes de Estado europeus e americanos. É engraçado, mas lembro muito bem da mulher do presidente da Nicarágua, querendo que eu lhe desenhasse olhos imensos sob um coque enorme... Certa vez, Judia, a chefe de protocolo da esposa do Guia, apareceu num carro procurando a mãe para pentear e maquilhar a sua patroa. Era a prova de que minha mãe adquirira grande reputação! Ela foi e passou horas ocupando-se de Safia Farkash, que lhe pagou um valor ridículo, muito abaixo do preço normal. Minha mãe ficou furiosa, sentiu-se humilhada. Então, quando Judia veio procurá-la da próxima vez, ela pura e simplesmente recusou, alegando estar com excesso de trabalho. Noutra ocasião chegou a esconder-se, encarregando-me de dizer que não estava. Minha mãe tinha personalidade. Jamais se curvava.
As mulheres da tribo de Kadafi eram em geral detestáveis. Se eu me dirigisse a uma delas para perguntar, por exemplo, se desejava um corte ou uma pintura, ela me olhava com desdém: quem é você para me dirigir a palavra? Certa manhã, umas delas chegou ao salão elegante, sunptuosa. Fiquei fascinada com o seu visual. Como a senhora é linda!, disse espontaneamente. Ela me respondeu com uma bofetada na cara. Fiquei estarrecida e corri para contar à mãe, que murmurou entre os dentes: cala a boca. A cliente tem sempre razão. Três meses depois, vi, angustiada, a mesma mulher abrir a porta do salão. Ela veio até mim, disse que a sua filha, que tinha a minha idade, acabara de morrer de cancro e me pediu desculpas. Foi ainda mais inesperado que a bofetada.
Outra vez, uma moça que se ia casar reservou o salão para o dia da noiva. Adiantou uma pequena parte e depois cancelou. Como a mãe se recusou a reembolsá-la, ela ficou possessa. Urrava, destruindo tudo que visse pela frente, e contou ao clã de Kadafi, que apareceu em peso e acabou com o salão. Um de meus irmãos chegou para acudir e foi espancado. Quando a polícia chegou, ele é quem foi para a cadeia. Os Kadafi fizeram de tudo para que ele ficasse preso o maior tempo possível, e foi preciso uma longa negociação entre tribos para que se chegasse a um acordo, seguido de perdão. Ele foi libertado depois de seis meses, com a cabeça raspada e o corpo coberto de hematomas. Tinha sido torturado. E, apesar do acordo, os Kadafi, que estavam à frente de todas as instituições de Sirte, incluindo a autarquia, ainda se juntaram para impor o fecho do salão por um mês. Fiquei revoltada.
Meu irmão mais velho, Nasser, me dava um pouco de medo e mantinha comigo uma relação de autoridade. Mas Aziz, nascido um ano antes de mim, era como um irmão gémeo, um verdadeiro cúmplice. Frequentávamos a mesma escola, e da parte dele eu sentia um misto de protecção e ciúme. Eu lhe servia como mensageira para possíveis namoradinhas. Já eu nem sonhava com o amor. De forma nenhuma. Nem me ligava nessas coisas. Era virgem por inteiro. Talvez eu mesma me censurasse, sabendo que minha mãe era dura e muito severa. Não sabia de nada. Não havia nem uma conversinha, por menor que fosse. Nada que mexesse comigo. Nem o menor sonho. Acho que vou-me arrepender a vida toda por não ter tido amores adolescentes. Eu sabia que um dia me casaria, porque era esse o destino das mulheres, e que então deveria maquilhar-me e me fazer bonita para o meu marido. Mas não sabia nada além disso. Nem do meu corpo, nem de sexualidade. Que pânico senti quando menstruei pela primeira vez! Corri para contar à minha mãe, que não me explicou nada. E passou a ser uma vergonha para mim quando a TV exibia comerciais de absorventes íntimos. Que embaraço sentia ao ver aquelas imagens na presença de rapazes da família... E lembro-me da minha mãe e das minhas tias dizendo-me: quando tiver dezoito anos, vamos-lhe contar umas coisas... Que coisas? Coisas da vida. Não tiveram tempo. Muamar Kadafi adiantou-se. Ele me triturou». In Annick Cojean, no Harém de Kadhafi, Editora Albatroz, Porto Editora, colecção Memórias e Testemunhos, 2014, ISBN 978-989-739-010-4.

Cortesia de EAlbatroz/JDACT