sábado, 12 de agosto de 2017

A Alma Trocada. Rosa Lobato Faria. «O miúdo foi crescendo por ali, caladinho, muito afeiçoado aos animais, a minha avó registou-o, para poder mandá-lo à escola, com o nome improvável de Justino Trovoada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Vai correr, então. Mostra os sapatos, são bons. Foi a tua mãe que os comprou? Mandou o motorista. Ele tem filhos da minha idade, está mais habituado. Vai, então. Cuidado com os lacraus. Corri até à beira da charca, mas fiquei entre as árvores, que o sol ainda ia alto e estava calor. As palavras continuavam a aparecer na minha cabeça como se alguém mas ditasse miligrã, oxálida, xarel e foi quando vi o Tinito, todo nu, entretido com o seu próprio membro. Negro. Assustador. Acho que há um Tinito ou uma Tinita na vida de todos nós. Pode ser a criadita descarada, a filha da vizinha, o rapaz das pizzas, o sabidão da turma. Este Tinito, que se chamava Justino, era um cigano que os pais tinham deixado à minha avó como penhor de um empréstimo que ela lhes fez. Era uma criança linda de dois anos, e por mais que a minha avó gritasse que não queria penhor nenhum (porque o dinheiro, já se sabe, havia de acabar por ser dado), muito menos um menino para criar, eles picaram a mula e desapareceram na curva da estrada, não sem recomendar que acautelassem a criança do mau-olhado.
O miúdo foi crescendo por ali, caladinho, muito afeiçoado aos animais, a minha avó registou-o, para poder mandá-lo à escola, com o nome improvável de Justino Trovoada, que era a alcunha do pai. Estudou até ao 9º ano, com relativa facilidade, era um ás em matemática, medíocre em português, mas não quis continuar. Os bichos eram a sua paixão e a avó Jacinta pô-lo a tomar conta das vacas e dos cavalos. Era um criado da sua casa, devidamente assalariado e assim as coisas deixavam de ser equívocas. O rapaz é seu neto? Não, não, é meu afilhado. A avó Jacinta era uma viúva ainda fresca, o rapaz um matulão incrivelmente bem-parecido com olhos negros e caracóis na testa, bermudas e t-shirt Benetton, que sabia misturar o odor a cavalo com um toque de lavanda. Mas de um modo geral chamavam-lhe o cigano e ele não escondia a sua origem. Gabava-se até, para as muitas raparigas que desviavam caminho para passar no monte da minha avó, da sua aristocracia cale. Sou neto de rei, dizia, embora não fizesse a mais remota ideia de quem era o avô. Esquecera os pais e só sabia como fora ali parar porque a Maria e a avó Jacinta lho tinham contado como se fosse uma história de fadas. Chegou a pensar que era um príncipe encantado e daí à convicção de ser neto de rei foi um pequeno passo.
Lá estava o Tinito na beira da charca, ao sol, com aquele corpo como eu só tinha visto num livro sobre escultura grega na biblioteca do meu avô, mas em moreno, a deliciar-se com o seu rapidíssimo jogo de mão. Depois meteu-se na água, deu meia dúzia de braçadas e viu-me quando vinha a sair. Veio ter comigo. Viste, não viste? Então agora tens que experimentar. Não, não. Dá fraqueza nos pulmões e até cegueira e até nascem pêlos na palma da mão. Ele virou as palmas claras para mim, exibindo-as como uma evidência. Vá, experimenta. Eu ensino-te. Despe-te. Foi ele que fez. Eu não despreguei os olhos dos seus olhos negros, a fingir que aquilo ali em baixo não me pertencia. E de repente aconteceu. A descoberta tomou conta de mim com tal violência que pensei que ia morrer. Depois fomos os dois ao banho. A charca (que hoje está seca) tinha água que dava ao Tinito pela cintura, a mim pelo pescoço. Brincámos como dois miúdos que éramos, o Tinito ia fazer dezoito anos, eu treze, e de repente senti-me enjoado, maldisposto, com uma urgência enorme de voltar para casa, para o meu quarto, para a minha cama, para a minha cortina de renda. Entrei só de calções, meio molhado e pus-me a vomitar». In Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de Língua Portuguesa, Porto, 1a edição, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.

Cortesia de ASA/JDACT