«(…) Era ela quem acabava arcando
com as contas da família. Ralava dia e noite, sempre à espera de algo que nos
levasse para bem longe da Líbia. Eu sabia que ela era diferente das outras mães,
e por isso começaram a tratar-me com desprezo na escola, eu era a filha da tunisiana.
Isso magoava-me. Os tunisianos eram tidos como modernos, emancipados, e em
Benghazi, acredite se quiser, essas qualidades não eram bem-vistas. E eu, tola,
senti-me depreciada. Desejava que meu pai tivesse escolhido como esposa alguém
do próprio país. Por que foi casar-se logo com uma estrangeira? Não pensou nos
filhos? Meu Deus, como eu era idiota!
Quando eu estava com onze anos, o
pai anunciou que nos mudaríamos para Sirte, cidade também da costa mediterrânea,
entre Benghazi e Trípoli. Ele queria aproximar-se do berço familiar, de seu pai,
um homem muito tradicional, que tinha quatro esposas, de seus irmãos e primos.
Na Líbia é assim: as famílias procuram formar grupos em torno do mesmo bastião,
que supostamente lhes dará força e sustentação incondicionais. Em Benghazi, sem
raízes nem relações, éramos como órfãos. Pelo menos foi assim que o pai nos
explicou. Mas para mim a notícia foi uma catástrofe. Deixar a escola? Minhas
amigas? Que drama! Fiquei doente. Doente de verdade. De cama por duas semanas.
Incapaz de me levantar para ir à nova escola. E então finalmente eu fui. Com o
coração apertado. E logo percebendo que não seria feliz. Antes de tudo, tenho
de dizer que aquela era a cidade natal de Kadafi. Ainda não falei da figura
porque não se tratava de uma preocupação nem de tema de conversa em casa. A mãe
nitidamente o detestava. Mudava de canal sempre que ele aparecia na TV, referia-se
a ele como o descabelado e repetia, sacudindo a cabeça: francamente, esse tipo
lá tem cara de presidente? O pai, penso eu, tinha medo e mantinha-se mais reservado.
Intuitivamente, todos nós percebíamos que, quanto menos se falasse dele, melhor
seria; o menor assunto que saísse do núcleo familiar poderia passar de boca em boca
e nos trazer grandes problemas. Sem fotos dele em casa e sobretudo sem militância.
Digamos que, por instinto, éramos todos cautelosos.
Na escola, em contrapartida, era
uma adoração. A sua imagem era onipresente; cantávamos o hino nacional todas as
manhãs diante de um imenso póster de Kadafi ao lado da bandeira; diziam todos,
entusiasmados: tu és nosso Guia, marchamos atrás de ti, blá-blá-blá; e, fosse
na sala de aula ou no intervalo, os alunos se gabavam de meu primo Muamar, meu
não-sei-o-quê Muamar, enquanto os professores falavam dele como um semideus. Não,
como um deus. Ele era bom, zelava pelas crianças, tinha todos os poderes. Devíamos
todos chamá-lo de pai Muamar. A sua estatura parecia-nos gigantesca. Havíamos-nos
mudado para Sirte para ficar perto da família e nos sentir mais integrados no
seio da comunidade, mas não valeu a pena. As pessoas de Sirte, aureoladas por
seu parentesco ou proximidade com Kadafi, achavam-se donas do universo.
Declaravam-se aristocratas, famílias
da corte, diante dos jecas e caipiras das outras cidades. Você é de Zliten?
Grotesco! De Benghazi? Ridículo. Da Tunísia? Que vergonha! A mãe,
decididamente, não importava o que fizesse, seria alvo de humilhação. E quando abriu,
no centro da cidade, não muito longe de casa na Rua Dubai, o seu lindo salão de
beleza, que as elegantes de Sirte passaram a frequentar, o desprezo só
aumentou. Apesar de tudo, ela tinha talento. Todos reconheciam a sua habilidade
em fazer os mais belos penteados da cidade e maquiagens fabulosas. Aliás, tenho
a certeza de que era invejada. Mas não imagina como Sirte é massacrada pela
tradição e pelo excesso de pudores. Uma mulher sem véu pode ser insultada na
rua. E, mesmo com véu, é suspeita. Que diabos faz aqui fora? Não estará atrás
de aventura? Será que tem um caso? As pessoas espionavam-se, os vizinhos
observam as idas e vindas na casa da frente, as famílias sentem inveja umas das
outras, protegem as suas filhas e falam mal das outras. A máquina de intrigas
fica ligada o tempo todo.
Na escola, o problema era
dobrado. Eu não era só a filha da tunisiana, mas também a menina do salão. Eu
procurava um banco e ficava ali sozinha, sempre esquiva. E nunca poderia ter
uma amiga líbia. Um pouco mais tarde, felizmente, simpatizei com uma garota que
era filha de um líbio e de uma palestina. Depois, com uma marroquina. Então,
com a filha de um líbio e de uma egípcia. Mas com as meninas da terra, jamais. Mesmo
quando certa vez menti, dizendo que minha mãe era marroquina. Parecia-me menos
grave que tunisiana. Foi pior. Minha vida então passou a girar quase que só em torno
do salão de beleza. O salão virou o meu reino». In Annick Cojean, no Harém de Kadhafi,
Editora Albatroz, Porto Editora, colecção Memórias e Testemunhos, 2014, ISBN
978-989-739-010-4.
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