«(…)
Quando a porta se fecha, apercebo-me de que o meu coração bate violentamente.
Estou furiosa com Kitry. Ela prometeu-me que não iria roubar roupas. Mas, na noite
em que fugiu, chegou vestida com as melhores sedas, anunciando que ou usava aquilo,
ou andava nua. Rose, a única outra rapariga corajosa o suficiente para fugir connosco,
tinha pagado o seu próprio vestido há muito tempo. Ela considerou o roubo de Kitty
com terror silencioso, lamentando claramente a sua decisão de se juntar a nós na
nossa fuga. Mas tudo correu muito bem para Rose, no final. Melhor, pelo menos, do
que para Kitty e para mim. Obrigando o meu corpo a acalmar, voltei para o nosso
pequeno quarto. Dormi demasiado tempo e preciso de me vestir e ir trabalhar.
Cuidadosamente, retiro o meu próprio vestido fino do seu esconderijo debaixo do
colchão de palha.
É de linho. Mas escolhi uma cor azul-escura
e o melhor pano que pude pagar. À distância, ou no escuro, pode ser confundido com
seda. Mandei-o confeccionar com os primeiros ganhos da rua, numa costureira barata
que compreendeu perfeitamente porque devia ser muito decotado na parte da frente,
e não fez julgamentos. Estou diante do nosso espelho comprido, o primeiro
utensílio do nosso mister que Kitty e eu comprámos, quando nos mudámos para este
quarto. Antes mesmo de termos uma cama. Componho o vestido, alisando-o, e as saias
são tão amplas que se entufam sozinhas, espalhando-se como grandes asas. Como se
uma rapariga fantasmagórica se estivesse a afundar no nosso soalho despido,
tentando voar para a liberdade. Meto-me no confinamento do vestido, puxando-o para
cima e acomodo-me à restricção habitual que me causa. Mrs. Wilkes deu-nos lições
diárias sobre como andar graciosamente, suportando o peso dos nossos grandes
vestidos. Porém, embora eu tenha aprendido a caminhar bem o suficiente, nunca
me senti à vontade com a sensação do tecido pesado a esmagar-me.
Aperto-o sozinha, com a grande destreza
que as mulheres da rua adquirem ao fazê-lo sem o auxílio de criadas. Olhando-me
ao espelho, aperto o corpete, puxando os meus seios para que apenas a sombra
mais ínfima do mamilo fique visível. Foi um truque que aprendi com Kitty uma vez
que nenhuma de nós tem os seios fartos das senhoras mais gordas. Nunca perdi totalmente
a magreza do campo. E uma vez que Kitty e eu vivemos da mão para a boca, os meus
braços e pernas tornaram-se mais finos nestes últimos meses. A minha nota de banco
especial, que trago sempre comigo, é escondida lá no fundo, longe da vista. Encostada
ao meu coração. Tocando-lhe com os dedos, faço a mesma promessa que fiz desde que
a ganhei. Que um dia eu vou ter a minha própria independência. Examino as meias-luas
dos meus seios, em seguida pego no pó e aplico-o para tornar o meu decote
inevitavelmente atraente. Com o meu anúncio profissional devidamente tratado, dirijo
a minha atenção para o rosto, que é provavelmente o meu melhor atributo. Foi a minha
cara bonita que convenceu Mrs. Wilkes a acolher-me, quando fui levada em
lágrimas e desonrada à sua porta.
Não pensem que sou pretensiosa por
me considerar bonita. Mrs. Wilkes só aceita meninas que são muito bonitas, e eu
não era a mais vistosa do seu harém. Rose, que fugiu comigo e com Kitty, é muito
mais bonita do que eu. E Belle é por demais encantadora. No entanto, era tão boazinha
que era impossível não se gostar dela. Toda a gente gostava de Belle. Ela era genuína,
bela e pura. Belle foi a única que me alertou para manter a minha nota de banco
especial segura, quando cheguei àquela casa. Apontou para as outras raparigas barulhentas
e espalhafatosas, que eu receava ter de imitar, e disse-me para ter cuidado. Elas
podem vestir-se como senhoras, sussurrara Belle, mas muitas vêm da sarjeta, e roubam
tão naturalmente como respiram. Mantém as coisas que te são caras no teu
espartilho. De todas as raparigas que vim a conhecer, foi de Belle que mais
gostei. Mrs.Wilkes vendeu-a em segredo pouco antes de nós fugirmos e nunca descobrimos
quem a comprou. Além de Rose e Belle, o meu rosto era o mais bonito naquela casa.
Mais bonito do que o de Kitty, que tem um ar descaradamente sedutor. Foi-me dito
que o meu semblante pode ser quase refinado no contexto certo. Mas eu não perdi
os meus maneirismos do campo». In Joanna Taylor, O Baile de Máscaras, 2015,
Edições ASA II, 2016, ISBN 978-989-233-518-6.
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