De
acordo com o original
D.
Maria
«(…) Pois
que! Esta mulher que se abraçava aos pés de Terpsichore, olha um dia para a
face austera de Thalia, e a deusa sorri-lhe e abraça-a, e as almas dâo-lhe
lagrimas, o publico dá-lhe flores, a imprensa dá-lhe applausos, e ella acorda
actriz! Actriz inesperadamente! Actriz repentinamente! Fizera-se bailarina, mas
fora actriz que nascera! Pode dizer-se que ninguém lhe ensinou a arte senão
depois de ella se mostrar artista; e mostrou-se artista desde o primeiro dia!
Como aprendeu, pois? Como adivinhou, então?
Vi-a
eu estrear-se, eu que tinha onze annos. Ainda me recordo de a ver apparecer na montanha
com o seu chapeusinho de cigana levemente inclinado sobre a orelha, no famoso theatro
do Salitre, toda a brilhar como se ainda estivesse nos divertissements,
saia curta, botinha de cano, n'uma peça que foi fallada n'esta Lisboa.
A
Ciganinha!
Que
noite, que noite! Os ratos, únicos frequentadores hoje d'esse theatro, ainda
estremecem do que seus avós lhe contaram de tal caso. A rapaziada effectiva de
S. Carlos affluiu ao Salitre n'essa recita, ao que me contam. Nas frisas e na
superior, viam-se os terriveis da platéa do theatro lyrico, curiosos de vêr
brilhar o talento d’esta singular creatura que o encontrara primeiro nos pés, e
o procurava agora na cabeça! O que provava ao menos não estar no caso do rifão,
visto que tinha ambas as coisas! Ia descobrindo a todo o instante horizontes novos,
auxiliada por grande força de vontade e pela attenção continua com que
estudava. N’isto appareceu-lhe o Assis.
A
historia anecdotica do theatro, tem mostrado mil vezes a importância do galan
para os destinos do amor. Eu creio verdadeiramente que se não existissem galans,
as mulheres teriam amado muito menos! Na peça de Psiché o comediante Baron,
da companhia de Molière, representava o papel do Amor, e dizem as noticias da
época, que elle arrebatava todos os corações dos espectadores, conseguindo
depois ser em particular tão bom actor com as senhoras, como com as damas de
theatro. Era uma perfeita guerra de mulheres, a qual havia de o alcançar
primeiro. La Bruyère conta-o bem claro: Roscius não pode ser vosso, Leha;
tem dono e, mesmo que assim não fosse, está já pedido, Claudia espera para o
ter, que elle se farte de Messalina!
A
amante de Molière, acabou por tomar a serio as phrases que Baron lhe dizia no
palco, aprendidas de cór, mas recitadas com o encanto e o calor da arte, que
tantas vezes se confundem com a inspiração verdadeira, natural, e espontânea da
alma! E a amante de Molière, apaixonou-se por Baron. Cincoenta annos depois,
pouco mais ou menos, Adrianna Lecouvreur, que passou a vida em amores, e fez
papelotes dos madrigaes de Voltaire, olhou um dia para lord Peterborug, que era
grande personagem, e para o galan Legrand, que não passava de um actor mediocre;
ambos elles a requestavam, e ella resolveu gostar de ambos, mas de um primeiro
que do outro, porque, são as memorias que o dizem, a grande actriz era
inconstante, mas não era falsa. E como era preciso principiar por um d'elles, Adrianna
Lecouvreur principiou por Legrand!
No
theatro do Salitre representava-se no tempo a que nos temos referido, um grande
numero de peças sentimentaes. O pranto tinha todas as noites que pagar foro ás
desventuras de um amante infeliz, a quem a barbaridade paterna separava do seu
adorado bem. O papel de amante era effectivo ao Assis. A parte de adorado
bem competia sempre á Soller. Uma vez, o amor, que é um traquina, metteu-se
deveras n'isto, e a Sller, querendo que a sua felicidade fosse tão auctorisada
no mundo como no palco, resolveu, de accordo com o Assis, principiarem por onde
os dramas acabam, pelo casamento!» In Júlio César Machado, Os Teatros de
Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874,
PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT