quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Lisboa no 31. Os Dias da Febre. João Pedro Marques. «Passado o turbilhão da guerra, a família regressou à sua vida na planície, mas Carlos não cortou o cordão umbilical que o ligava à serra»

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Carlos Cabral
«(…) Único filho de um fidalgo abastado da região de Ourém, Carlos Cabral nascera em finais de 1810, quando a Beira e o Ribatejo sofriam as inclemências da terceira invasão francesa. Surpreendidos no Buçaco e impedidos de avançar sobre Lisboa pelas fortificações das Linhas de Torres Vedras, os soldados do enorme exército de Massena estacionaram entre Santarém e Rio Maior, derramaram-se pelo terreno e dedicaram os últimos meses do ano a pilhar as povoações e quintas das cercanias, enquanto aguardavam a chegada de reforços e mantimentos (o exército de Massena não seria reabastecido nem reforçado em condições que lhe permitissem abrir caminho para Lisboa, e viria a retirar-se no início de Março de 1811). A insegurança era enorme, havia quadrilhas de salteadores por todo o lado, e o pai de Carlos decidiu avisadamente refugiar-se com a família numa pequena casa térrea, muito discreta e pouco acessível, que possuía na serra de Aire. Foi aí que Carlos nasceu e viveu os primeiros meses de vida.
Passado o turbilhão da guerra, a família regressou à sua vida na planície, mas Carlos não cortou o cordão umbilical que o ligava à serra. Na infância, os seus dias costumavam ser solitários porque os miúdos das aldeias próximas tinham de ajudar os pais nos suores das lavouras e mais trabalhos rurais. Quando se reuniam todos, era um nunca acabar de correr aos ninhos, de roubar fruta nos pomares, de lutas e de banhos no rio. Mas, sem os companheiros, Carlos entretinha-se pouco por casa e, quando não estava retido pelo padre Isidoro, que vinha de Ourém para lhe ensinar contas, gramática e latim, escapava-se regularmente para os contrafortes da serra. Ficava horas esquecidas com os pastores a ouvi-los tocar instrumentos rudimentares e assobiar aos cães e ovelhas. Levava-lhes broa, enchidos e o que pudesse roubar da cozinha, e eles retribuíam com pão duro e cascas de laranja, às vezes, com uma laranja inteira, que naquela paisagem calcária e semiárida, varrida pelo vento, adquiriam um sabor inigualável. Coma mais, menino Carlos, dizia o pastor, cortando o chouriço com o seu canivete e oferecendo-lhe uma rodela prensada entre o polegar e a lâmina enegrecida.
Deixas-me usar o teu canivete, Manuel?, pedia Carlos, de mão estendida, trincando o chouriço. Eu não me corto. Com cuidado..., segurando assim e torcendo no fim, demonstrava o pastor. Atire-me ali uma pedra àquela ovelha que se está a apartar das outras. Deixou de ir à serra quando se mudou para Coimbra, onde fez parte dos preparatórios e cursou leis na austera Universidade. O pai entendera-se com um primo que vivia na cidade com a mulher, para que lhe acolhesse o filho estudante, e durante anos Carlos viveu em casa desses primos já idosos, apoquentando-lhes o sono com os seus horários desgarrados e as suas noites de farra nos bilhares e nas ruas da baixa coimbrã. Com as solicitações da cidade e sem o filtro purificador da serra de Aire, a sua vida mudara do dia para a noite. Ganhara em trepidação e malícia o que perdera em bucolismo e simplicidade.
Em Coimbra, Carlos adquiriu fama de violento. Aparecia regularmente envolvido em cenas de pancadaria e corria nos círculos estudantis da cidade que era desagradável, ou até brutal, com as mulheres que ganhavam a vida nas vielas e nos botequins. Insultava-as, não lhes pagava os serviços, por vezes batia-lhes. Um dia uma dessas prostitutas apresentou queixa contra ele. O primo idoso moveu influências, o caso foi abafado, mas a fama ficou. Era merecida e tinha raízes antigas e profundas. Carlos nunca se esqueceu da sua primeira relação com uma mulher, ou melhor, da sua primeira tentativa, porque nessa ocasião, tinha ele treze anos, não chegou a consumá-la. Tudo ocorrera com uma criada nova, a seguir à fuga da mãe e poucos meses antes de ir para Coimbra». In João Pedro Marques, Os Dias da Febre, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-098-5.

Cortesia de PEditora/JDACT