terça-feira, 29 de agosto de 2017

O Bosque da Noite. Djuna Barnes. «O desenho fora executado sob a supervisão de Guido, que, cedendo a um impulso de momento, o reivindicou como brasão dos Volkbein, apesar de se tratar de um motivo heráldico há muito declinante»

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Prosterna-te
«(…) Três maciços pianos (Hedvig tocara as valsas do seu tempo com a mestria de um homem, no movimento rápido e acelerado do seu sangue, com a enérgica delicadeza de toque dos vienenses que, apesar de aguilhoados pelo amor ao ritmo, satisfazem tal necessidade à maneira dos duelistas) alongavam-se sobre a espessa amálgama sangue-de-dragão das tapeçarias madrilenas. O escritório abrigava duas secretárias desconexas, de uma preciosa madeira cor de sangue. Hedvig gostava de coisas aos pares ou em trios. No meio arco que existia nas secretárias haviam sido pregadas tachas com cabeças em prata, de modo a desenhar um leão, um urso, um carneiro, uma pomba e, ao centro, uma tocha a arder. O desenho fora executado sob a supervisão de Guido, que, cedendo a um impulso de momento, o reivindicou como brasão dos Volkbein, apesar de se tratar de um motivo heráldico há muito declinante sob o severo olhar papal. As janelas abertas até ao chão (um toque francês que Guido considerava elegante) davam, através das cortinas de veludo nativo ou estofos tunisinos, para o parque e as persianas tinham aquele tom de vermelho particularmente sombrio de que os austríacos tanto gostam. Nos painéis de carvalho, que se elevavam acima da longa mesa até ao tecto arqueado, estavam suspensos os retratos em tamanho natural dos pretensos pai e mãe de Guido. A senhora era uma majestosa florentina de olhos brilhantes e astuciosos e boca peremptória. Compridas mangas com tufos e pérolas subiam quase até às eriçadas pontas da renda engomada que lhe rodeavam a cabeça, cónica e entrançada. A massa profunda das roupas caía à sua volta em arestas sombrias; a cauda do vestido, que se perdia numa perspectiva de árvores primitivas, tinha a espessura de um tapete. Parecia esperar uma ave. O cavalheiro estava precariamente empoleirado num cavalo de batalha. Parecia menos montado no cavalo do que prestes a baixar sobre ele. O azul de um céu italiano estendia-se entre a sela e as nádegas do cavaleiro. O cavalo fora captado pelo pintor a descrever a parte final de um arco, a crina erguida numa ondulação agonizante, e a cauda apontada para a frente, por entre as finas pernas chanfradas. A sua roupa era uma confusa mistura de romanesco e religioso, e na dobra do braço esquerdo trazia um chapéu emplumado, com a copa voltada para fora. No conjunto, a composição poderia ter sido um capricho de terça-feira de Carnaval. A cabeça do cavalheiro colocada a três quartos oferecia uma notável semelhança com Guido Volkbein, a mesma curva de nariz cabalístico e os mesmos traços curtidos e ardentes, excepto no local em que o azul virginal dos olhos arqueava as pálpebras como se um outro órgão que não o da visão estivesse situado sob aquela carne. Não havia qualquer quebra na actividade desse olhar fixo, infinito e objectivo. A semelhança era acidental. Se alguém se desse ao trabalho de tirar as coisas a limpo, teria descoberto que estes quadros eram os retratos de dois intrépidos actores antigos. Guido tinha-os encontrado num qualquer recanto esquecido e poeirento e comprou-os quando se convenceu de que iria necessitar de um álibi para o seu sangue.
Era neste ponto que a história exacta parava para Felix que, trinta anos mais tarde, fizera a sua aparição no mundo com estes factos, os dois retratos e nada mais. A sua tia, sem deixar de pentear as longas tranças com um pente de âmbar, contou-lhe o que sabia, e era tudo o que conhecia do passado de Felix. O modo como Felix crescera, desde o nascimento até aos trinta anos, era por todos desconhecido, pois os passos do judeu errante reproduzem-se em cada um dos filhos. Em qualquer local ou tempo em que o encontremos, sentimos que vem de qualquer lado, pouco importa qual, de um país que devorou mais do que habitou, de uma terra desconhecida que o alimentou mas que ele não pôde receber como herança, pois o judeu em todo o lado parece não ser de parte alguma. Quando se mencionava o nome de Felix, logo três ou quatro pessoas juravam que o tinham visto simultaneamente, na semana anterior, em três países diferentes». In Djuna Barnes, O Bosque da Noite, 1936, 1950, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-161-9.

Cortesia de Relógiod’águaE/JDACT