quarta-feira, 25 de maio de 2011

Fundação Oriente: Concerto Barroco na Cidade Proibida. «Hoje não vamos fazer mais nada senão conversar e rir. É proibido falar de coisas difíceis ou tristes”. Na verdade, estivemos a conversar durante muito tempo. A discussão chegou com a música e o imperador deu mostras de um conhecimento vasto e preciso. Ele próprio tocou a canção Encantamento de Pu’an num instrumento ocidental de 120 cordas de ferro, fabricado no palácio»

Cortesia de fundacaooriente

Concerto Barroco na Cidade Proibida
28 Maio, 21.30, Auditório

«Cyrille Gerstenhaber (soprano), Wang Weiping (canto, pipa), Shi Kelong, (canto, percussões), Lai Longhan (flauta dizi), François Picard (órgão positivo, xiao), Jonathan Dunford (viola de gamba), Rémi Cassaigne (teorba), Mathieu Dupouy (clavecino), Jean-Christophe Frisch (flauta).
Le Baroque Nomade é um agrupamento de música barroca cuja aventura o leva, por vezes, a pôr em confronto este repertório dos séculos XVII e XVIII com outros tipos de música que o grupo foi assimilando graças aos seus músicos que percorreram o mundo numa época em que as viagens conduziam a culturas híbridas. O grupo é dirigido por Jean-Cristophe Frisch.


Desde o início da penetração dos Europeus na Ásia, a música teve um papel importante. Um dos exemplos mais surpreendentes é o de Matteo Ricci, jesuíta italiano que chegou a Pequim em 1598, sendo o primeiro europeu a ali chegar depois dos viajantes medievais. Na bagagem levava um manicórdio que conseguiu oferecer ao imperador. O instrumento viria a ser utilizado, pouco depois, para ensinar algumas músicas aos eunucos do palácio imperial. Este facto pode considerar-se o ponto de partida da presença da música occidental em Pequim, cuo auge irá ocorrer em finais do século XVIII, com a representação, perante o imperador Qian Long, da ópera La Cecchina, de Niccolò Piccini com libreto de Carlo Goldoni.

Durante este período de quase dois séculos, numerosos missionários estabelecidos na corte imperial serviram-se da música para atrair neófitos para o Cristianismo ao mesmo tempo que estudavam a música chinesa. Alguns deles praticaram-na com êxito. É provável, porém, que a interpretassem com os instrumentos que tinham levado da Europa, tais como flautas, clavecinos, violas, violinos, etc. Muitas descrições da época relatam os concertos perante o imperador, cuja reacção nem sempre terá sido elogiosa. Alguns instrumentos foram fabricados na China, especialmente órgãos e clavecinos, primeiro pelo jesuíta português, Tomás Pereira e, mais tarde, pelo italiano Todorico Pedrini, membro da Ordem de São Lázaro. Até hoje, nenhum destes instrumentos foi localizado. O órgão construído por Pedrini esteve no Palácio de Verão até 1860, ano em que foi destruído pelos exércitos inglês e francês. Provavelmente, com o palácio perdeu-se também o instrumento.

Cortesia de mlciuc

Uma “Congregação de Músicos”, iniciada no século XVII na Igreja de Beitang, em Pequim, viria a ser posteriormente dirigida pelo letrado chinês, Ma Andre. Os ensaios realizavam-se, pelo menos, uma vez por semana e o grupo era suficientemente numeroso para poder manter três orquestras que actuavam, em simultâneo, nas principias festividades. Várias fontes indicam que músicas chinesas e europeias foram utilizadas nas cerimónias, mas ignora-se a percentagem que cabia a cada estilo. A Congregação de Músicos manteve-se activa ao longo do século XVIII e os fiéis da igreja de Beitang ainda hoje perpetuam a tradição.

Um dos concertos perante o imperador foi relatado pelo letrado da corte, Gao Shiqi (1644-1703), nas suas Notas secretas de Pengshan:
  • Na tarde do dia 2 de Junho de 1703, no gabinete de trabalho do palácio, o imperador decretou: “Hoje não vamos fazer mais nada senão conversar e rir. É proibido falar de coisas difíceis ou tristes”. Na verdade, estivemos a conversar durante muito tempo. A discussão chegou com a música e o imperador deu mostras de um conhecimento vasto e preciso. Ele próprio tocou a canção Encantamento de Pu’an num instrumento ocidental de 120 cordas de ferro, fabricado no palácio. No final, declarou: “As harpas (konghou) já existiam nas dinastias Tang e Song, mas não as conhecemos. Ignoramos a sua técnica. Ordeno às senhoras do palácio que toquem uma melodia, escondidas atrás de um biombo.” Dito isto, acrescentou: “A gente do palácio é excelente nos instrumentos de corda (xiansuo). Ordeno às cortesãs que demonstrem a sua arte, tocando sucessivamente os instrumentos hupo, pipa e sanxianzi.” E disse ainda: “Tocai a peça para qin, Os gansos juntam-se na praia (Pingsha luo yan) com quatro instrumentos em simultâneo: hupo, pipa, xianzi e zheng.” Ordenou então que continuassem a tocar as quatro partes em uníssono e o som dos instrumentos era muito puro e refinado. Quando acabaram de tocar, disse o imperador: “As damas do palácio tocam cítara desde a infância, mesmo quando dormem e comem. Ao fim de dez anos de esforços, atingem o domínio pleno do mistério.” Logo a seguir ordenou que tocassem A Lua está no alto em “tonalidade cambiante” cuja flexibilidade chamou a atenção do cronista: “Certamente que haverá no céu pessoas por quem essa música ressoa.” Terminada esta música, puseram uma mesa com frutas. Trouxeram um vaso de vinho para a mesa que estava à esquerda do imperador que me chamou para me oferecer um copo de vinho, dizendo-me: “Sei que, por princípio, não bebes mas, neste belo dia, tens de beber.” Agradeci e, apesar dos meus princípios, bebi.
Programa:
  • Estrofes musicais em louvor da Mãe Santíssima, Wu Li (1632-1718);
  • Oito canções com instrumentos ocidentais, Matteo Ricci (1552-1610);
  • N°2, Il Pastore cambia di collina;
  • Concede, Kenqi zhuwu Tianzhu, texto de Lodovico Buglio (1676), música de Giovenale Ancina, Tempio Armonico, 1599;
  • Sonata X en Dó mineur, Teodorico Pedrini CM (1671-1746), manuscrito de Pequim;
  • A Magia do Sol, tradicional;
  • O Demónio do Orgulho, Wu Li;
  • A Folha de Salgueiro, Joseph Marie Amiot SJ (1718-1793), tradicional;
  • Senhora do Mundo, anónimo português, colecção Jesuítas na Ásia, século XVII;
  • Emboscada de todos os lados, tradicional;
  • Vuestra soy, manuscrito de San Juan del Monte, Filipinas, século XVII;
  • Noite de Lua sobre o rio primaveril, tradicional.
In Fundação Oriente, Francisco Peixoto.

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