Cortesia de carimbodaterra
«Os mercadores dos arcos do Rossio, desde a Betesga até S. Domingos, fecharam as lojas, onde vendiam as cassas de Holanda, os panos de linho cadequim da Índia, rendas, tranças, franjas e passamanarias, vindo em pessoa, com os seus escravos pretos e mouros, engrossar o tropel. A multidão corria por debaixo dessa arcada, que limitava por oriente o Rossio, abrangendo o hospital e o dormitório do convento de S. Domingos , amontoando-se às portas da igreja, onde o burburinho era grande, e um frade, de crucifixo em punho, pregava, exaltando o furor religioso da turba.
As mulheresagitavam-se coléricas pronunciando ditos obsecenos, palavras descompostas, à mistura com as expressões de refinada devoção e de um fervente beatério. Incitavam os homens à matança; e, do púlpito, o frade, oráculo do céu, definia com palavras os sentimentos da multidão. Os judeus eram a causa da fome, eram a causa da peste! De cruz alçada, saindo da igreja, os frades vinham chamando «heresia!», concitando o povo à matança.
Cortesia de liboriocosta
Desencadeou-se a tempestade, rebentando numa hora a cólera reunida em muitos séculos. Cresceram as fogueiras no Rossio e na Ribeira; e os bandos iam caçar pela cidade os judeus escondidos, invadindo as casas. As chamas crepitavam, e os gritos dos moribundos conseguiam ouvir-se por entre o vozearda plebe. Viam-se homens despirem-se, para mostrar que, não sendo circuncisados, não podiam ser judeus. Queimavam-se os infelizes porque os tinham assassinado, e assassinavam-se porque se não deixavam roubar. No primeiro dia, domingo, matou-se meio milhar. Na segunda-feira mataram-se mais de mil. Na terça acalmou a fúria «porque já não achavam quem matar». Três dias e duas noites durou a orgia; e no fim contavam-se mais de trezentas pessoas queimadas. mais fr duas mil mortas, e não se sabe quantas mulheres, chorando com amargura a sua viuvez, a sua orfandade, a sua miséria, a sua desonra.
O rei acudiu com tropas, abriu devassa e enforcou muita gente; entre essa, frades.
Cortesia de promoview
Os fumos da Índia, como dizia Afonso de Albuquerque, não deixavam pensar a corte senão em enriquecer e gozar. Pouco importavam essas miseráveis questões dos judeus, quando dia a dia chegavam do Oriente os preciosos carregamentos e as notícias das vitórias estupendas.
Ocupado a calcular os lucros da sua fazenda da Índia, mercador e apaixonado pelas ricas alfaias preciosas, como um Médicis, D. Manuel tratava os seus capitães como feitores; e com um espírito acanhado de negociante, ouvia todas as intrigas e usava do seu poder de rei para satisfazer os seus caprichos. Injusto e ingrato, era pequeno e cruel: Damião de Góis fala dos alvarás de espera, uns em contrário dos outros. D. Francisco de Almeida escrevia da Índia ao rei:
- Se cada dia cá há-de armar uma invenção, sem informação do que cá vai, perder-se-nos-à tudo em pouco.
O rei queria ser absoluto, além-mar, como era em Portugal, desde que resumira em si todas as soberanias da Idade Média, unificando a legislação, reformando os forais, levando a cabo a obra do seu predecessor». In Oliveira Martins, História de Portugal, Europa-América edição nº 140823/5304.
Cortesia de Europa-América/JDACT