sábado, 14 de maio de 2011

Camões e a Infanta D. Maria: Parte X. Ribatejo. «Saudades da infanta, queixumes contra a crueza que ela havia mostrado, desesperança, tristeza, profundo abatimento, mas, ao mesmo tempo, o propósito de não deixar, por coisa nenhuma, o seu "cuidado tão ditoso". Figurando-se à beira do Tejo, num vale triste, em noite escura...Corre, suave e brando. Com tuas claras aguas. Saídas de meus olhos, doce Tejo...»

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Com a devida vénia a José Maria Rodrigues.

II
No Ribatejo
Ao ver-se obrigado a sair de Lisboa, Camões nota, não sem estranheza, que o «duro desfavor, que o condena» a apartar-se da sua tão querida, lhe tem os sentidos por tal forma embotados, que a «dor da ausência» é mais pequena do que devia ser. Vai, porém, reagir: essa dor há de sofrê-la bem intensamente. Como é possível, com efeito, que o não faça morrer o ter de afastar-se «d'aquilo que mais quer?» Mas, ainda mais do que a morte, lhe custaria não lhe ser bem doloroso o inevitável apartamento.

Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me exprimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena,

O duro desfavor que me condena,
Quando por a memoria se reparte ,
Endurece os sentidos de tal arte,
Que a dor da ausência fica mais pequena.

Mas como pode ser que na mudança
Daquillo que mais quero, este tão fóra
De me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança,
Porque mais sentirei partir, senhora,
Sem sentir muito a pena da partida.
(Soneto 55)

Ainda outro soneto, escrito também pelo apaixonado poeta na ocasião da ida para o exilio:

Se alguma hora em vós a piedade
De tão longo tormento se sentira,
Não consentira Amor que me partira
De vossos olhos, minha Saudade!

Aparto-me de vós, mas a vontade.
Que na alma pelo natural vos tira,
Me faz crer que esta ausência que é mentira;
Mas inda mal, porém, porque é verdade.

Ir-me-ei, senhora, e neste apartamento
Tomarão tristes lagrimas vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.

Assim darei a vida a meu tormento,
Que emfim cá me achará minha lembrança
Já sepultado em vosso esquecimento.

O estado d'alma do poeta, durante os primeiros tempos do exílio. Saudades da infanta, queixumes contra a crueza que ela havia mostrado, desesperança, tristeza, profundo abatimento, mas, ao mesmo tempo, o propósito de não deixar, por coisa nenhuma, o seu «cuidado tão ditoso», eis os tópicos do belo poemeto.

Figurando-se à beira do Tejo, num vale triste, em noite escura, Camões (Almeno) lastima assim a sua sorte:

Corre, suave e brando.
Com tuas claras aguas.
Saídas de meus olhos, doce Tejo,
Fé de meus males dando,
Para que minhas maguas

Sejam castigo igual de meu desejo,
Que pois em mim não vejo
Remédio nem o espero,
E a morte se despreza
De me matar, deixando-me á crueza
Daquella por quem meu tormento quero.

E insistindo na ideia expressa nestas últimas palavras, diz pouco depois:

Não cesse meu tormento
De fazer seu officio,
Pois aqui tem uma alma ao jugo atada ;
Nem falte o soffrimento,
Porque parece vicio
Para tão doce mal faltar-me nada.

Não pode, porem, deixar de estranhar que a sua bem-amada procedesse com tanta crueza:

Oh nympha delicada,
Honra da natureza!
Como pôde isto ser.
Que de tão peregrino parecer
Pudesse proceder tanta crueza?

Como é que de uma «causa divinal» pôde provir um «efeito contrário?» Como se explica «tanta pena», motivada por tal causa?
Não vem de nenhum geito
De causa divinal contrario effeito.
Pois como pena tanta
É contra a causa della?

Há aqui alguma coisa que se não pode explicar pelas leis da natureza:

Fora do natural é minha tristeza.

Não é, porém, só nisto que com a infanta são contrariadas essas leis:

Mas a mi que me espanta?
Não basta, ó nympha bella,
Que podes perverter a natureza?
Não é a gentileza
De teu gesto celeste
Fora do natural?
Não pode a natureza fazer tal.
Tu mesma, ó bella nympha, te fizeste.

Mas, por mais que o poeta «busque desculpas», pois que o «suave Amor» lhe não sofre:

Culpa na cousa aniada e tão amada,
(Canção 11)

surge no seu espírito a inevitável pergunta:

Porém, porque tomaste
Tão dura condição, se te fizeste?

In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

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Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT