domingo, 4 de setembro de 2011

H. Oliveira Marques. A Sociedade Medieval Portuguesa: A Mesa. « Na casa real, temos testemunhos do consumo de algumas drogas em quantidades apreciáveis, pelo menos desde os fins do século XIII. As contas da ucharia de D. Dinis, relativas aos anos de 1278-82, mostram a compra de açúcar, com as variedades açúcar rosado e açúcar de Alexandria»

Cortesia de esferadoslivros

A Mesa
«Ao lado do peixe fresco, a Idade Média fez grande uso de peixe seco salgado e defumado. No norte da Europa, o tráfico de arenque salgado e fumado ocupou muitos barcos e movimentou grandes capitais. Se, em Portugal, a riqueza piscatória e o reduzido «hinterland» justificavam menos o consumo do peixe não fresco, seria não obstante errado julgar da sua inexistência. Na falta de frigoríficos e com um clima pouco frio, o recurso à secagem pelo sol facilitava o transporte do peixe a distância e a possibilidade de armazenagem por períodos longos. É assim que um recibo passado por D. Afonso III aos seus uchões, em 1279, nos dá a conhecer a entrada na régia ucharia, entre 1257 e 1270, de 7687 pescadas secas (640 dúzias e mais 7), 317 congros secos (26 dúzias e mais 5), 2658 postas, «talhos» de baleia e 1656 lampreias secas; tudo resultado de serviços e colheitas de povoações piscatórias. Em Lisboa, defumava-se sardinha para exportar para Sevilha ou Aragão, nos fins do século XIV. Também para Castela se remetiam pescadas secas. E sabemos da importação de peixe seco proveniente do norte da Alemanha.

Não eram especialmente apreciadas as hortaliças e os legumes, pelo menos entre as classes superiores. O povo, esse fazia basto uso das couves, couve comum, couve-flor, couve murciana, couve tronchuda, e não menos de feijões e favas, amplamente difundidos no mundo islâmico, que duns e doutras consumia diversas variedades. As favas, assim como as ervilhas, as lentilhas, o grão de bico e os chícharos, tinham igualmente significado como sucedâneos ou complementos do pão. Quando escasseavam os cereais no Reino, o que passou a ser relativamente frequente a partir dos meados do século XIV, importavam-se muitas vezes favas do estrangeiro para ocorrer à penúria. Os navios bretões demandavam então o Tejo com carregamentos de favas e de outros legumes que iam carregar a portos franceses ou ingleses. Moída para fabrico de farinha, ou simplesmente cozinhada, a fava chegava para manter a fome até ao regresso das boas colheitas.

Cortesia de esferadoslivros

Os Portugueses do interior, sobretudo beirões e trasmontanos, não precisavam todavia de recorrer à fava. Bastava-lhes a castanha dos castanheiros úberes que o solo e o clima favoreciam. Durante metade do ano, comiam castanha em vez de pão. Não consta, porém, que o sucedâneo interessasse ao país todo. Restam escassos testemunhos de um comércio desenvolvido de castanha, das zonas do interior para os centros populosos do litoral e do sul.
Brócolos, alfaces, pepinos, rabanetes, rábanos, cogumelos, cenouras, nabos, espargos e outros produtos hortícolas consumiam-se da mesma forma no Portugal medievo.
Nas casas ricas, onde a culinária era requintada, as ervas de cheiro serviam de ingredientes indispensáveis à preparação das iguarias. Coentros, salsa e hortelã, ao lado de sumos vários, de limão e de agraço, de vinagre, de cebola e de pinhões, contribuíam para o bom tempero das vitualhas. Cebola e azeite entravam para o tradicional refogado.
Ao mandar matar Pero Coelho, um dos executores de Inês de Castro,
  • «el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, vinagre e azeite para o coelho...»
assim lhe fez logo tirar o coração pelas costas.

O livro de culinária portuguesa do século XVI inclui uma receita sobre coelho assado. Nela se emprega porém manteiga, em vez de azeite:
«Receìta de coelho»
«O coelho assado, tomarão a cebola pisada muito miúda e afogá-la-ão na manteiga; e, depois de afogada, temperada de vinagre; e deitar-lhe-ão cravo e açafrão e pimenta e gengibre; e então tomarão o coelho despedaçado e deitá-lo-ão dentro e dar-lhe-ão uma fervura; e porão umas fatias num prato e então deitarão o coelho em cima das fatias».

Cortesia de esferadoslivros

O cravo, o açafrão, a pimenta e o gengibre é que não seriam muito vulgares nas receitas da nossa Idade Média. Só com o estabelecimento de relações comerciais com o Oriente se introduziram em Portugal vastas quantidades de especiarias, a preços relativamente módicos. Logo se passou a usar e a abusar do seu emprego na preparação da cozinha. É verdade que ao longo dos séculos XII a XV se conheceram e aplicaram na comida diversas especiarias. Mercadores catalães e sevilhanos traziam-nas a Portugal, importadas do Oriente. Na casa real, temos testemunhos do consumo de algumas drogas em quantidades apreciáveis, pelo menos desde os fins do século XIII. As contas da ucharia de D. Dinis, relativas aos anos de 1278-82, mostram a compra de açúcar, com as variedades açúcar rosado e açúcar de Alexandria. Era tão caro, que se avaliava em mais de cinquenta vezes o preço do mel! Compravam-se igualmente pimenta, gengibre e outras especiarias difíceis de identificar hoje. A pimenta devia ser relativamente frequente, embora cara. Surge mencionada na maioria dos forais dos séculos XII e XIII.

Para bem condimentar os alimentos, usavam os Portugueses da Idade Média espécies várias de matérias gordas. O azeite colocava-se, sem contestação, em primeiro lugar, e o seu papel na culinária foi aumentando, à medida que a mancha dos olivais subia para norte. Contudo, o emprego da manteiga era igualmente relevante e parece ter correspondido a uma indústria local bastante desenvolvida, talvez mais até do que a do queijo. São numerosas as referências a manteiga na documentação que nos resta.
Ao lado da manteiga, outras gorduras animais de farto consumo eram o toucinho e a banha. Num país como Portugal, em que o gado porcino avultava na pecuária, e em que a carne de porco abundava no açougue, compreende-se o papel da banha de porco no tempero culinário de todas as camadas populacionais. Em certos casos, mas com menos frequência, também a gordura de vaca servia na confecção dos repastos. Não se esqueça, claro está, o sal, que não apenas funcionava como tempero básico a quase todas as vitualhas, mas também se exigia para a conservação de carnes, peixes e outros alimentos que fosse necessário armazenar ou transportar». In A. H. Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Aspectos da Vida Quotidiana, A Esfera dos Livros 2010, ISBN 978-989-626-241-9.

Cortesia de Esfera dos Livros/JDACT