domingo, 4 de setembro de 2011

Leituras. Parte XVI. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. A Torre. «Constança vê-se a si própria acenar, a uma janela, para logo depois deixar tombar o seu longo cabelo, como se dum curso de água se tratasse; pelas paredes exteriores da torre. Este transforma-se num rio -que não chega, contudo, para seu espanto, a desaguar no mar. Quando fita o chão aquilo que vê em torno da torre são areias, areias secas…»

Cortesia de wikipedia

A Torre
«O matrimónio ficou nesse dia adiado por decisão de seu pai e de seu futuro esposo para o ano de 1329, ou seja para o ano em que ela completasse 15 anos de idade. Constança passou esse mês de Setembro no peitoril da sua ampla janela olhando o céu agitado de pássaros. As estações permaneciam idênticas a si mesmas e ela notou que o seu novo estado coincidia precisamente com o limite duma estação. O Verão chegava ao seu termo e com ele baixava aquele incêndio abrasador que iluminava a própria noite. A casa deixava de ser a única sombra em todo o planeta e não era preciso molhar a ponta dos dedos, em godés de prata, para refrescar o calor do corpo. As bacias seriam arrumadas na parte baixa da casa e Setembro traria a par do matrimónio um frescor crepuscular. Setembro não é, de modo nenhum, o mês do amor, mas nada impede que nele se conheçam as núpcias.

As folhas caíam, o primeiros ventos levantavam na terra partículas de cinza e removiam no céu agregados de nuvens. Constança regressaria a Penafiel, não muito longe de Aranda do Douro, apenas por breves momentos. A sua partida para Touro tinha sido decidida, onde depois aguardaria o dia do seu matrimónio. Toda essa linha do Douro que ia desde a cidade de Touro até Sória constituía, de facto, a linha avançada de Castela. Nela se tinha formado o país nos tempos quase místicos do Imperador Afonso VI e hoje formava como que uma linha patrimonial onde se celebravam os actos públicos e os casamentos. Castela e Leão apareciam como o par modelo de toda a unidade peninsular. Touro, cidade do Couro, era o centro dessas núpcias.

Cortesia de pea

Ao abandonar o lado oriental da sua casa de Penafiel, onde as janelas abriam sobre o Douro, Constança foi assaltada de pressentimentos que tomou à conta das palpitações que lhe batiam no peito como se batessem à porta do ser. É pelo peito que tudo entra, o peito é a boca do ser. Mas, nessa noite teve um sonho nítido e exacto. A agitação da noite, o movimento pouco habitual dos criados, o aprontar dos cavalos, a viagem estabelecida para a manhã seguinte contribuíram para que ela o fixasse quando acordou. A memória não só não o esqueceu, como o imaginou. Dizia o sonho o seguinte. Um bando de pássaros passava em direcção Oeste. Desprendiam-se do céu como folhas e corriam desabridamente em sentido do Ocidente, traçando linhas. Aí, nesse ponto ocidental havia uma torre, alta e hierática, que se debruçava sobre um mar desconhecido, que evocava, na sua superfície lisa e azul, o próprio céu. Constança vê-se a si própria acenar, a uma janela, para logo depois deixar tombar o seu longo cabelo, como se dum curso de água se tratasse; pelas paredes exteriores da torre. Este transforma-se num rio -que não chega, contudo, para seu espanto, a desaguar no mar. Quando fita o chão aquilo que vê em torno da torre são areias, areias secas onde há pouco estavam fortes leivas duma terra húmida e escura. A passagem dos pássaros secou essa terra.

Há sonhos que despertam em nós a evidência de acontecimentos vividos. Acorda-se deles com a estranha sensação do existido e leva-se algum tempo a tirar da retina da memória esse choque de imagens, que têm por vezes mais força do que as próprias acções de dia havidas.

Cortesia de wikipedia

O Besouro
O Inverno de l326 foi áspero e cru. É verdade que o Inverno castelhano é dificilmente suportável devido às variações bruscas de temperatura que afectam o planalto e o transformam dum dia para o outro num lago gelado ou num átrio coberto de neve. Os castanheiros repousam os seus braços e todo o maciço montanhoso que vai desde a Penha de França, belíssimo contraforte perto de Salamanca, ou desde Alba de Tormes, não longe dos muros de Ávila, até Albarracin, já na vertente catalã, desperta ventos álgidos e furiosos. Castela, sobretudo Castela-a-Velha, tem muito desse espírito rude e todas essas montanhas que se avistam de Toledo são como que outros inóspitos Cantábricos. Descobre-se aí um outro leonismo, se por este entendermos o vivo expansionismo que desde Afonso das Astúrias (886-910) Leão parecia, como sinal heráldico, inspirar; descobre-se um outro imperalismo feito mais com pastores do que com guerreiros. O famoso espírito de Castela, reconstrutor apressado duma Espanha mítica, é apenas uma mistura de restauracionismo asturiano e duma mentalidade nova e mais burguesa. O castelhanismo dificilmente conseguiu ser uma fraternidade, porque lhe faltou uma afirmação essencial. Ele estava demasiado preso à herança leonesa, tipicamente tradicional e goda, que foi depois, infelizmente, substituída pelo espírito ainda mais tradicional das cruzadas.

A Primavera fez-se sentir depois dum Inverno como um degelo. Os dias de Abril são como que tecidos duma luz inefável que percorre, como uma labareda, tudo. Essa luz é a própria seiva que corre nas plantas e nos braços dos homens. A seiva são os raios solares liquefeitos. Trabalha-se. então a terra, tosquiam-se as primeiras lãs e levam-se os rebanhos para outras terras mais altas e mais verdes. Castela é fértil nesses contrastes. As ovelhas substituem neste país as cabras e o seu leite é sinal duma riqueza típica. A cidade de Touro, situada praticamente nos córregos do Douro leonês, é o exemplo característico de como o castelhano se alicerçou mais na ocupação do estranho do que na vivificação do próprio. Touro tem bonitas casas leonesas, ao modo de Zamora ou até de Miranda do Douro, duma cantaria escura e perfeita. Os homens dessas regiões, nascidos no meio de pedras e socalcos, eram, por condição própria, pedreiros exímios. Foi aí, em Touro, no seu palácio de construção grave e sóbria, entre a sua corte mais íntima e chegada, que Afonso XI de Castela, já devidamente confirmado pelas Cortes de Valadolid, e já casado, sem união matrimonial porém, com Constança Manuel, recebeu João, «o Torto», filho do infante D. João, irmão de Sancho IV e antigo aliado da casa dos Manuéis (18)». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.

Cortesia de PE América/JDACT