quarta-feira, 3 de julho de 2013

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «… quando as cortes de Lisboa de 1439 defendem que só a elas e não ao rei cabe eleger o sucessor, o chefe. E não só o dizem como o fazem, elegendo, contra a vontade do defunto rei Duarte…»

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Sobre a Concepção Lopeana do Poder
«(…) Por outro lado, a eleição do Mestre de Avis como rei de Portugal estava justificada pela força, pelo sangue das batalhas e, sobretudo, pela redistribuição da riqueza de que o rei era a garantia (plano histórico). Desde 1398 que a chefia de João I não era contestada nem sequer pela rainha legítima Beatriz. O plano providencial, a que se refere Luís de Sousa Rebelo, antes de existir na mente de Fernão Lopes, viveu na realidade epocal de João I. O sermão de frei Pero constituiu uma peça teórica e uma acção em prol da sagração providencial (plano ideológico) do eleito rei mestre João. Ainda hoje os governantes se vão revestir de sagrado, ainda hoje não desdenham ser ungidos. O sermão de frei Pero integrou-se no tropel dos acontecimentos revolucionários. E o que mais é, Fernão Lopes não inventou o sermão nem os factos miraculosos, para justificar o seu herói, a legitimidade do seu chefe. Aliás, o retrato de corpo inteiro que o historiador nos traça de João I levanta por vezes problemas graves para a consideração do tal carisma do chefe, embora seja o único de boa memória.
Vejamos agora o episódio providencial de frei João da Barroca. Transcrevo Fernão Lopes:
  • E por a grande nomeada que pela cidade corria deste Frei João da Barroca, assim de sua honesta vida como de bons conselhos que dava a alguns que o iam visitar, foi o Mestre falar com ele. E esta fala dizem alguns que foi a requerimento, do homem-bom, com o qual falara Álvaro Pais, fazendo-lhe queixume como se o Mestre queria partir; e que ele lhe disse que todavia conselhasse ao Mestre que se não partisse, ca a Deus prazia de ele ser regedor desta terra e senhor dela.
Com a expressão que todavia conselhasse ao Mestre que se não partisse, ca a Deus prazia de ele ser regedor desta terra e senhor dela, Fernão Lopes evidencia, antes de mais, a alta providência do sagaz Álvaro Pais. A defesa e a prática da via electiva é assumida no tempo próximo da escrita da Crónica de D. João I (tempo um tanto diferente daquele em que ocorre a escrita das outras duas crónicas da trilogia) quando as cortes de Lisboa de 1439 defendem que só a elas e não ao rei cabe eleger o sucessor, o chefe. E não só o dizem como o fazem, elegendo, contra a vontade do defunto rei Duarte, o Infante Pedro como Regedor do Reino.
Identificar o itinerário das leituras de Fernão Lopes e dos outros autores constitui tarefa fundamental a que meteu ombros, para nosso proveito, o autor do livro que vimos comentando. Mas, como é óbvio (será para toda a gente?), ler, citar ou, na prática medieval, usar textos e glosas sem indicar o autor não significa que quem cita e usa a prosa de outrem se reduza às ideias que cita. Muitas vezes as palavras são as mesmas mas as ideias subjacentes são não só diferentes como até ironicamente contrárias. O criador põe sempre vinho novo nos tonéis. E quanto maior a imaginação criadora daquele que cita, quanto mais diverso for o contexto e o tempo do que se cita, maior o universo da diferença, mais rasgados os novos horizontes de sentido.
Sem negar ou apoucar a necessidade de identificar o itinerário ideológico dos autores, itinerário que nos abre janelas para marcar a diferença e muitas vezes para assinalar o limite, a não leitura de certos autores constitui por vezes um terrível limite, penso que é possível avançar na leitura de um texto, mesmo com poucos referentes, porquanto cada texto constitui um todo vivo de ideias presas e lacradas nas palavras. O que não podemos é transgredir os seus limites, tendo cuidado com as mudanças de sentido e os diferentes sentidos que as palavras milenárias ou multisseculares encobrem e transportam. Convencido desta possibilidade, embora treinado por leituras medievais e outras, partindo do todo que é a Crónica de D. João I, ousei (e ouso) expor a concepção da História em Fernão Lopes, surpreendendo-o precisamente no cume da sua carreira literária». In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

Cortesia da Caminho/JDACT