Sobre a Concepção Lopeana do Poder
«(…) Por outro lado, a eleição do Mestre de Avis como rei de Portugal
estava justificada pela força, pelo sangue das batalhas e, sobretudo, pela
redistribuição da riqueza de que o rei era a garantia (plano histórico).
Desde 1398 que a chefia de João I
não era contestada nem sequer pela rainha legítima Beatriz. O plano
providencial, a que se refere Luís de Sousa Rebelo, antes de existir na mente
de Fernão Lopes, viveu na realidade epocal de João I. O sermão de frei Pero
constituiu uma peça teórica e uma
acção em prol da sagração providencial (plano ideológico) do eleito rei
mestre João. Ainda hoje os governantes se vão revestir de sagrado, ainda hoje
não desdenham ser ungidos. O sermão
de frei Pero integrou-se no tropel dos acontecimentos revolucionários. E o que mais
é, Fernão Lopes não inventou o sermão nem os factos miraculosos, para justificar o seu herói, a legitimidade do seu chefe. Aliás, o retrato de corpo inteiro
que o historiador nos traça de João I levanta por vezes problemas graves para a
consideração do tal carisma do chefe, embora seja o único de boa memória.
Vejamos agora o episódio providencial de frei João da Barroca.
Transcrevo Fernão Lopes:
- E por a grande nomeada que pela cidade corria deste Frei João da Barroca, assim de sua honesta vida como de bons conselhos que dava a alguns que o iam visitar, foi o Mestre falar com ele. E esta fala dizem alguns que foi a requerimento, do homem-bom, com o qual falara Álvaro Pais, fazendo-lhe queixume como se o Mestre queria partir; e que ele lhe disse que todavia conselhasse ao Mestre que se não partisse, ca a Deus prazia de ele ser regedor desta terra e senhor dela.
Com a expressão que todavia
conselhasse ao Mestre que se não partisse, ca a Deus prazia de ele ser regedor desta
terra e senhor dela, Fernão Lopes evidencia, antes de mais, a alta
providência do sagaz Álvaro Pais. A defesa e a prática da via electiva é
assumida no tempo próximo da escrita da Crónica de D. João I (tempo um tanto
diferente daquele em que ocorre a escrita das outras duas crónicas da trilogia)
quando as cortes de Lisboa de 1439
defendem que só a elas e não ao rei cabe eleger o sucessor, o chefe. E não só o
dizem como o fazem, elegendo, contra a vontade do defunto rei Duarte, o
Infante Pedro como Regedor do Reino.
Identificar o itinerário das leituras de Fernão Lopes e dos outros
autores constitui tarefa fundamental a que meteu ombros, para nosso proveito, o
autor do livro que vimos comentando. Mas, como é óbvio (será para toda a gente?), ler, citar ou, na prática
medieval, usar textos e glosas sem indicar o autor não significa que quem cita
e usa a prosa de outrem se reduza às ideias que cita. Muitas vezes as palavras
são as mesmas mas as ideias subjacentes são não só diferentes como até ironicamente
contrárias. O criador põe sempre vinho novo nos tonéis. E quanto maior a
imaginação criadora daquele que cita, quanto mais diverso for o contexto e o
tempo do que se cita, maior o universo da diferença, mais rasgados os novos
horizontes de sentido.
Sem negar ou apoucar a necessidade de identificar o itinerário ideológico
dos autores, itinerário que nos abre janelas para marcar a diferença e muitas
vezes para assinalar o limite, a não leitura de certos autores constitui por
vezes um terrível limite, penso que é possível avançar na leitura de um texto,
mesmo com poucos referentes, porquanto cada texto constitui um todo vivo de
ideias presas e lacradas nas palavras. O que não podemos é transgredir os seus
limites, tendo cuidado com as mudanças de sentido e os diferentes sentidos que
as palavras milenárias ou multisseculares encobrem e transportam. Convencido
desta possibilidade, embora treinado por leituras medievais e outras, partindo
do todo que é a Crónica de D. João I, ousei (e ouso) expor a concepção da História em Fernão Lopes,
surpreendendo-o precisamente no cume da sua carreira literária». In
António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção
Universitária, 1984.
Cortesia da Caminho/JDACT