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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…)
Um calafrio percorreu a espinha de Bernat. Pere Esteve sorriu. Bernat aceitou a
oferta. Fê-lo ali mesmo, no palheiro, sem sequer se aproximar da rapariga, mas
sem tirar os olhos dela. Foi uma decisão precipitada, e Bernat estava ciente
disso, mas não podia dizer que se tivesse arrependido; ali estava Francesca,
bela, jovem, forte. Acelerou-se-lhe a respiração. Hoje mesmo... Que estaria a
pensar a rapariga? O mesmo que ele? Francesca não participava na alegre
conversa das mulheres; permanecia em silêncio junto da mãe, sem se rir,
acompanhando os gracejos e os risos das demais com sorrisos forçados. Os
olhares de ambos cruzaram-se por um instante. Ela corou e baixou os olhos, mas
Bernat viu como o movimento do peito dela traía o seu nervosismo. A camisa
branca de linho tornou a aliar-se ao desejo e às fantasias de Bernat. Felicito-te!,
ouviu dizer atrás de si, enquanto lhe aplicavam uma palmada forte nas costas. O
sogro tinha-se aproximado dele. Cuida-me bem dela, acrescentou, seguindo o olhar
de Bernat e apontando para a rapariga, que já não sabia onde havia de se
esconder. Se bem que se a vida que lhe vais proporcionar for como esta festa...
É o melhor banquete que alguma vez vi. Decerto que nem o senhor de Navarcles
pode gozar destes manjares! Bernat quisera tratar bem dos seus convidados e
preparara quarenta e sete pães dourados de farinha de trigo; evitara a cevada,
o centeio ou a espelta, habituais na alimentação dos camponeses. Farinha de
trigo candial, branca como a camisa da sua mulher! Carregado com os pães
amassados, dirigira-se ao castelo de Navarcles para os cozer no forno do seu
senhor, pensando que, como sempre, dois pães seriam o suficiente para que lhe
permitissem cozê-los ali. Os olhos do fogueiro arregalaram-se, abrindo-se como
pratos diante do pão de trigo, para logo se fecharem numas inescrutáveis
vigias. Dessa vez, o pagamento ascendeu a sete pães, e Bernat abandonou o
castelo praguejando contra a lei que os impedia de ter um forno para cozer o
pão nos seus lares..., e uma forja, e guarnições... Decerto que sim, respondeu
ao sogro, afastando da ideia aquela má recordação. Ambos observaram o terreiro
da casa. Talvez lhe tivessem roubado uma parte do pão, pensou Bernat, mas não
do vinho que agora bebiam os seus convidados, do melhor, daquele que o seu pai
tinha reservado e que tinham deixado envelhecer durante anos, nem da carne de
porco salgada, nem da panela de verduras cozidas com um par de galinhas, nem,
claro, dos quatro borregos que, abertos em canal e atados em paus, assavam
lentamente sobre as brasas, espirrando gordura e exalando um aroma
irresistível. De repente, as mulheres puseram-se em movimento. A panela de
verduras já estava pronta e as escudelas que os convidados tinham trazido
consigo começaram a encher-se. Pere e Bernat tomaram lugar à única mesa que
havia no terreiro, e as mulheres acorreram a servi-los; ninguém se sentou nas
quatro cadeiras restantes. As pessoas, de pé, sentadas em troncos ou no chão,
começaram a dar conta do ágape, de olhos postos nos borregos constantemente
vigiados por algumas mulheres, enquanto bebiam vinho, conversavam, gritavam e
riam. Uma grande festa, sim, senhor, sentenciou Pere Esteve, entre uma colherada
e outra. Alguém brindou aos noivos. Imediatamente todos se lhe uniram. Francesca!,
gritou o pai, com o copo erguido em direcção à noiva, que estava entre as mulheres,
perto dos borregos. Bernat olhou para a rapariga, que de novo escondeu o rosto.
Está
nervosa,desculpou-a o pai, piscando-lhe o olho. Francesca, filha!, voltou a gritar.
Brinda connosco! Aproveita agora, porque daqui a pouco vamos embora..,. quase
todos. As gargalhadas embaraçaram ainda mais Francesca. A rapariga ergueu a
meia altura um copo que lhe tinham posto na mão e, sem beber dele e virando
costas aos risos, tornou a concentrar a atenção nos borregos. Pere Esteve bateu
com o copo contra o copo de Bernat, fazendo derramar o vinho. Os convidados
imitaram-nos. Tu te encarregarás daqui a pouco de que lhe passe a timidez,
disse-lhe, em voz bem alta, para que todos os presentes ouvissem. As
gargalhadas estalaram de novo, desta vez acompanhadas de comentários brejeiros,
a que Bernat preferiu não prestar atenção. Entre risos e gracejos, todos deram
boa conta do vinho, do porco salgado e da panela de verduras e galinha. Quando
as mulheres começavam a tirar os borregos das brasas, um grupo de convidados
calou-se e voltou os olhos para a orla do bosque das terras de Bernat, situado
para lá de uns extensos campos de cultivo, no final de um suave declive do
terreno que os Estanyol tinham aproveitado para plantar parte das cepas que
lhes proporcionavam aquele tão excelente vinho. Em poucos segundos, fez-se
silêncio entre os presentes. Três ginetes tinham aparecido entre as árvores. Os
seus passos eram seguidos por vários homens a pé, fardados. Que fará ele aqui?,
interrogou-se num sussurro Pere Esteve. Bernat seguiu com o olhar os homens que
se aproximavam, contornando os campos. Os convidados murmuravam entre si. Não
percebo, disse por fim Bernat, também num sussurro, nunca por aqui tinha passado.
Não fica a caminho do castelo. Não me agrada nada esta visita, acrescentou Pere
Esteve. A comitiva movia-se lentamente. A medida que as figuras se aproximavam,
os risos e os comentários dos cavaleiros substituíam o alvoroço que até então
tinha reinado no terreiro; todos conseguiam ouvi-los. Bernat observou os seus
convidados; alguns deles já não olhavam, e mantinham-se de cabeça baixa.
Procurou Francesca, que estava entre as mulheres. O vozeirão do senhor de
Navarcles chegou até eles. Bernat sentiu que a raiva o invadia. Bernat! Bernat!,
exclamou Pere Esteve, sacudindo-lhe o braço. Que estás a fazer aqui? Corre a recebê-lo.
Bernat ergueu-se de um salto e correu a receber o seu senhor. Sede bem-vindo a
esta vossa casa, saudou, inclinando-se, assim que ficou diante dele. Llorenç de
Bellera, senhor de Navarcles, puxou as rédeas do cavalo e deteve-se diante de Bernat.
És Estanyol, o filho do louco?, inquiriu secamente. Sim, senhor. Estivemos a
caçar e, quando regressávamos ao castelo, fomos surpreendidos por esta festa. A
que se deve? Por entre os cavalos, Bernat conseguia vislumbrar os soldados,
carregados com diversas peças de caça: coelhos, lebres e galinhas-do-mato. A
sua visita é que precisa de explicação, teria Bernat gostado de lhe responder. Ou
talvez o forneiro vos tenha informado do pão de trigo candial?» In
Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN
978-972-251-511-5.
Cortesia de
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