quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Seguiu-se a vez de Halil. Ele nunca deixara de estar em contacto connosco e fizera questão de comunicar regularmente com o pai de Orhan. Deu-nos uma ajuda preciosa no decorrer dos tempos difíceis»

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A melancolia de Salman
«(…) Quanto a mim, não via Salman há quase quinze anos. Ele saíra de casa quando eu tinha treze anos. Guardava dele a imagem de um homem alto e magro, o cabelo negro e espesso, e uma voz profunda e melódica. Senti-me surpreendida quando vi pela primeira vez a sua silhueta no terraço. Por um momento, julguei tratar-se do nosso pai. Salman envelhecera. Ainda não fizera cinquenta anos, mas tinha o cabeio branco e ralo. Parecia mais baixo do que da última vez em que o vira. O corpo aumentara de volume, o rosto tinha demasiada carne, coxeava ligeiramente enquanto caminhava e os seus olhos apresentavam uma expressão triste. Cruel Egipto. Por que razão o fizera envelhecer assim? Abraçámo-nos e beijámo-nos. A sua voz era distante. E agora já és mãe, Nilofer. Estas foram as únicas palavras que me dirigiu nesse dia. O modo como falara exprimira surpresa, como se o facto de alguém trazer crianças ao mundo se tivesse transformado numa espécie de novidade. Por um qualquer motivo, o comentário e o tom de voz de Salman irritaram-me. Não sei ao certo porquê, mas lembro-me de me sentir vagamente zangada. Talvez porque sugerisse uma recusa em me considerar ou em me tratar como uma mulher adulta. A seus olhos eu continuava a ser uma criança. Antes que eu tivesse tempo para pensar numa resposta adequada, Petrossian foi buscá-lo para que ele pudesse ter uma audiência privada com o nosso pai.
Seguiu-se a vez de Halil. Ele nunca deixara de estar em contacto connosco e fizera questão de comunicar regularmente com o pai de Orhan. Deu-nos uma ajuda preciosa no decorrer dos tempos difíceis, certificando-se de que nos alimentávamos e vestíamos convenientemente quando Dmitri e a maioria dos gregos de Konya se tinham visto privados dos respectivos empregos, o que acontecera como forma de castigo. Vira Halil pela última vez quando ele chegara a Konya sem avisar, estava-se então numa bela tarde de Primavera. Na altura, Orhan tinha três anos, mas nunca esquecera o tio, ou melhor, o seu bigode, o qual tinha o condão de o irritar de todas as vezes que o via. Olhei para Halil. Estava bonito como sempre, e o uniforme ficava-lhe bem. Era com frequência que me perguntava como é que o membro mais travesso da minha família conseguira aceitar a disciplina e as rotinas do Exército. Enquanto me abraçava, ele sussurrou-me ao ouvido: ainda bem que aqui estás. Ele contou alguma história ao Orhan? Acenei. Yusuf Pasha? E quem mais? Qual das versões? Soltámos uma gargalhada. Quando estávamos prestes a seguir o resto da família e a entrar em casa, Halil reparou numa nuvem de poeira que se erguia ao longe, na estrada que conduzia à nossa casa. Tinha de ser uma carruagem, mas quem é que poderia estar lá dentro? Iskander Pasha era conhecido por toda a família devido aos seus hábitos nada sociáveis e ao seu mau feitio. Como consequência, eram poucas as pessoas que visitavam a nossa casa de Istambul sem terem sido convidadas, e sou incapaz de me recordar de uma só vez que tivéssemos recebido visitas aqui. A hospitalidade tradicional era qualquer coisa de estranha para o meu pai, no que respeitava à sua própria família alargada. Mostrava-se particularmente hostil em relação aos primos direitos e respectivos filhos, mas podia igualmente mostrar-se distante dos irmãos. Por tudo isto, as visitas inesperadas haviam sempre constituído uma surpresa agradável para nós enquanto crianças, sobretudo em se tratando do tio Kemal, que nunca chegava sem uma carruagem carregada de presentes. - Estamos à espera de alguém hoje? Não. Halil e eu ficámos no terraço, à espera que a carruagem chegasse. A dada altura, entreolhámo-nos e deixámos escapar uma gargalhada nervosa. Quem seria capaz de se atrever a chegar daquela maneira à casa do nosso pai? Quando éramos muito pequenos, a casa pertencia ao nosso avô, e, nessa altura, estava sempre repleta de convidados. Três dos quartos de dormir encontravam-se sempre preparados para receber os amigos mais chegados do avô, que podiam entrar e sair sempre que lhes apetecesse. Todos os membros do pessoal sabiam que eles podiam chegar a qualquer hora, acompanhados pelos seus próprios criados. Contudo, isto passara-se há muito tempo. Pouco depois de o meu pai se ter transformado no dono da casa, deixara bem claro não serem ali bem-vindos os velhos amigos do avô. O facto assumira as proporções de um escândalo familiar. A avó levantara objecções numa linguagem estranhamente forte para ela, mas o meu pai não se deixara convencer. O seu estilo era completamente diferente e nunca simpatizara com as sanguessugas que haviam frequentado a casa durante o tempo do seu pai, transformando a vida das criadas mais atraentes em qualquer coisa de miserável». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.






Cortesia de PEAmérica/JDACT