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A
melancolia de Salman
«(…)
Quanto a mim, não via Salman há quase quinze anos. Ele saíra de casa quando eu
tinha treze anos. Guardava dele a imagem de um homem alto e magro, o cabelo
negro e espesso, e uma voz profunda e melódica. Senti-me surpreendida quando vi
pela primeira vez a sua silhueta no terraço. Por um momento, julguei tratar-se
do nosso pai. Salman envelhecera. Ainda não fizera cinquenta anos, mas tinha o cabeio
branco e ralo. Parecia mais baixo do que da última vez em que o vira. O corpo
aumentara de volume, o rosto tinha demasiada carne, coxeava ligeiramente
enquanto caminhava e os seus olhos apresentavam uma expressão triste. Cruel
Egipto. Por que razão o fizera envelhecer assim? Abraçámo-nos e beijámo-nos. A
sua voz era distante. E agora já és mãe, Nilofer. Estas foram as únicas palavras
que me dirigiu nesse dia. O modo como falara exprimira surpresa, como se o
facto de alguém trazer crianças ao mundo se tivesse transformado numa espécie de
novidade. Por um qualquer motivo, o comentário e o tom de voz de Salman
irritaram-me. Não sei ao certo porquê, mas lembro-me de me sentir vagamente
zangada. Talvez porque sugerisse uma recusa em me considerar ou em me tratar
como uma mulher adulta. A seus olhos eu continuava a ser uma criança. Antes que
eu tivesse tempo para pensar numa resposta adequada, Petrossian foi buscá-lo
para que ele pudesse ter uma audiência privada com o nosso pai.
Seguiu-se
a vez de Halil. Ele nunca deixara de estar em contacto connosco e fizera
questão de comunicar regularmente com o pai de Orhan. Deu-nos uma ajuda
preciosa no decorrer dos tempos difíceis, certificando-se de que nos
alimentávamos e vestíamos convenientemente quando Dmitri e a maioria dos gregos
de Konya se tinham visto privados dos respectivos empregos, o que acontecera
como forma de castigo. Vira Halil pela última vez quando ele chegara a Konya
sem avisar, estava-se então numa bela tarde de Primavera. Na altura, Orhan
tinha três anos, mas nunca esquecera o tio, ou melhor, o seu bigode, o qual tinha
o condão de o irritar de todas as vezes que o via. Olhei para Halil. Estava
bonito como sempre, e o uniforme ficava-lhe bem. Era com frequência que me
perguntava como é que o membro mais travesso da minha família conseguira
aceitar a disciplina e as rotinas do Exército. Enquanto me abraçava, ele
sussurrou-me ao ouvido: ainda bem que aqui estás. Ele contou alguma história ao
Orhan? Acenei. Yusuf Pasha? E quem mais? Qual das versões? Soltámos uma
gargalhada. Quando estávamos prestes a seguir o resto da família e a entrar em
casa, Halil reparou numa nuvem de poeira que se erguia ao longe, na estrada que
conduzia à nossa casa. Tinha de ser uma carruagem, mas quem é que poderia estar
lá dentro? Iskander Pasha era conhecido por toda a família devido aos seus
hábitos nada sociáveis e ao seu mau feitio. Como consequência, eram poucas as
pessoas que visitavam a nossa casa de Istambul sem terem sido convidadas, e sou
incapaz de me recordar de uma só vez que tivéssemos recebido visitas aqui. A
hospitalidade tradicional era qualquer coisa de estranha para o meu pai, no que
respeitava à sua própria família alargada. Mostrava-se particularmente hostil
em relação aos primos direitos e respectivos filhos, mas podia igualmente
mostrar-se distante dos irmãos. Por tudo isto, as visitas inesperadas haviam sempre
constituído uma surpresa agradável para nós enquanto crianças, sobretudo em se tratando
do tio Kemal, que nunca chegava sem uma carruagem carregada de presentes. -
Estamos à espera de alguém hoje? Não. Halil e eu ficámos no terraço, à espera
que a carruagem chegasse. A dada altura, entreolhámo-nos e deixámos escapar uma
gargalhada nervosa. Quem seria capaz de se atrever a chegar daquela maneira à
casa do nosso pai? Quando éramos muito pequenos, a casa pertencia ao nosso avô,
e, nessa altura, estava sempre repleta de convidados. Três dos quartos de
dormir encontravam-se sempre preparados para receber os amigos mais chegados do
avô, que podiam entrar e sair sempre que lhes apetecesse. Todos os membros do
pessoal sabiam que eles podiam chegar a qualquer hora, acompanhados pelos seus
próprios criados. Contudo, isto passara-se há muito tempo. Pouco depois de o
meu pai se ter transformado no dono da casa, deixara bem claro não serem ali
bem-vindos os velhos amigos do avô. O facto assumira as proporções de um
escândalo familiar. A avó levantara objecções numa linguagem estranhamente
forte para ela, mas o meu pai não se deixara convencer. O seu estilo era
completamente diferente e nunca simpatizara com as sanguessugas que haviam frequentado
a casa durante o tempo do seu pai, transformando a vida das criadas mais
atraentes em qualquer coisa de miserável». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000,
tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003,
ISBN 972-105-125-X.
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