terça-feira, 9 de agosto de 2016

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «… lembrou-se de ter ouvido Ignazio falar daquele lugar: era um dos templos beneditinos mais afamados da península, conhecido como “monasterium in Italia primum”»

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O Mosteiro dos Enganos
«(…) Isso é do conhecimento de muitas das pessoas que vivem aqui dentro. Deveis ser mais preciso se quereis continuar a falar do assunto. Maynulfo prometera revelar-me tudo o que sabia a esse respeito, justificou-se o abade. No entanto, a sua súbita partida não tho permitiu. Bom, vendo bem, não há a menor pressa em serdes informado, retorquiu o mercador, intimamente mais tranquilo. Maynulfo mantivera o juramento e não revelara o segredo nem mesmo ao seu sucessor. Mas eu sou o abade!, objectou Rainerio, dando de súbito mostras do nervosismo que o roía por dentro. Sou o responsável por este mosteiro. Tenho de saber o que se esconde entre as suas paredes. Asseguro-vos de que não se trata de nada de importante, reverendo padre, acalmou-o Ignazio, ao mesmo tempo que na sua cabeça ecoava o ar perentório e encolerizado com que falava. Fez então menção de se levantar, dando a entender que a conversa terminara. Tende paciência. Dentro de dias partirei para tratar de uns assuntos. No meu regresso, dentro de alguns meses, no máximo, revelar-vos-ei o mistério. Prometo. Em resposta, o abade limitou-se a fazer um murmúrio despeitado. Bem magro era o consolo que lhe era oferecido.
Já estavam perto da Abadia de Pomposa. Willalme observou atentamente, procurando descobrir alguma coisa para lá da trama verdejante que coroava as encostas. Distinguiu o coruchéu do complexo, admirou a elegância da forma até que olhou ainda mais para cima, maravilhado com a brancura das nuvens espalhadas pelo céu. A paz daqueles lugares encantava-o, mas lembrou-se de que devia manter-se alerta: cumpria uma missão de que Ignazio o incumbira. O mercador não quisera enviar a correspondência pelo correio de Rainerio, temendo que o abade lesse o conteúdo antes de o mandar entregar ao destinatário. Daí que tivesse preferido que ela fosse secretamente expedida da vizinha Pomposa, onde ninguém o conhecia. Enquanto o francês mergulhava nestes pensamentos, o barqueiro observava entre uma e outra remadela a bainha de uma espada curva que despontava por entre o seu manto. Parecia a arma de um sarraceno. Teve o cuidado de disfarçar, no entanto, a sua expressão curiosa não passou despercebida. Willalme virou-se de repente, trespassou-o com um olhar gélido e voltou a esconder a espada com um gesto seco. O barqueiro desviou os olhos rapidamente. Ninguém, nem um cão raivoso, alguma vez o olhara daquele modo. Era já quase meio-dia quando o francês se deu conta de que chegara ao destino. Assim que a embarcação tocou a margem, saltou para terra e despediu-se do barqueiro. Enquanto se encaminhava para a abadia, lembrou-se de ter ouvido Ignazio falar daquele lugar: era um dos templos beneditinos mais afamados da península, conhecido como monasterium in Italia primum. Não que ele desse muita importância ao facto. Aproximou-se de um monge e cumprimentou-o gentilmente.
Perdoai, padre, tenho urgência em fazer chegar uma carta a Veneza. E tenciono pernoitar aqui até obter uma resposta. Trata-se de uma urgência, especificou, empregando as palavras que Ignazio lhe recomendara. A quem poderei dirigir-me? Pedi ao guardião, filho, respondeu o beneditino. No entanto, se vos apressardes, podereis entregar a carta àqueles marinheiros, ali ao fundo. Estais a vê-1os? Vão direitos a Pavia, mas antes farão escala em Veneza. Depois de ter agradecido, Willalme correu na direcção dos homens que o monge lhe indicara. Estavam ocupados a carregar sacos de sal para dentro de uma embarcação atracada na margem de um canal.
Ignazio tinha acabado de falar. Observava Rainerio pelo canto do olho, à espera de um sinal de despedida, quando, subitamente, uma das portas da sala se abriu deixando entrar um monge pequeno e atarracado, de rosto rubicundo emoldurado por uma coroa de cabelo preto. Devia andar pelos sessenta anos, mas os traços recordaram os de um miúdo. O recém-chegado inclinou a cabeça saudando o mercador e depois dirigiu-se ao abade com um ar impaciente. Exprimiu-se num latim colorido com um acento toscano: pater, sois esperado no refeitório. O almoço vai ser servido. - Não me parecia assim tão tarde. Rainerio apontou na direcção do mercador. É Ignazio de Toledo, um amigo vindo de muito longe. Deveis ter reparado nele ontem à noite, no refeitório, sentado ao meu lado. Ouvi falar de vós, mestre Ignazio. O abade Maynulfo de Silvacandida tinha grande consideração por vós. O monge interrogou-se sobre o mau humor que ensombrava o olhar de Rainerio; parecia contrariado e não lhe agradava vê-lo assim. Sou Gualimberto de Prataglia, amanuense e bibliotecário. Peço desculpa pela minha intromissão. Interrompi alguma coisa importante?» In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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