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O Mosteiro
dos Enganos
«(…)
Isso é do conhecimento de muitas das pessoas que vivem aqui dentro. Deveis ser
mais preciso se quereis continuar a falar do assunto. Maynulfo prometera
revelar-me tudo o que sabia a esse respeito, justificou-se o abade. No entanto,
a sua súbita partida não tho permitiu. Bom, vendo bem, não há a menor pressa em
serdes informado, retorquiu o mercador, intimamente mais tranquilo. Maynulfo
mantivera o juramento e não revelara o segredo nem mesmo ao seu sucessor. Mas
eu sou o abade!, objectou Rainerio, dando de súbito mostras do nervosismo que o
roía por dentro. Sou o responsável por este mosteiro. Tenho de saber o que se
esconde entre as suas paredes. Asseguro-vos de que não se trata de nada de
importante, reverendo padre, acalmou-o Ignazio, ao mesmo tempo que na sua
cabeça ecoava o ar perentório e encolerizado com que falava. Fez então menção
de se levantar, dando a entender que a conversa terminara. Tende paciência.
Dentro de dias partirei para tratar de uns assuntos. No meu regresso, dentro de
alguns meses, no máximo, revelar-vos-ei o mistério. Prometo. Em resposta, o
abade limitou-se a fazer um murmúrio despeitado. Bem magro era o consolo que
lhe era oferecido.
Já
estavam perto da Abadia de Pomposa. Willalme observou atentamente, procurando
descobrir alguma coisa para lá da trama verdejante que coroava as encostas.
Distinguiu o coruchéu do complexo, admirou a elegância da forma até que olhou
ainda mais para cima, maravilhado com a brancura das nuvens espalhadas pelo
céu. A paz daqueles lugares encantava-o, mas lembrou-se de que devia manter-se
alerta: cumpria uma missão de que Ignazio o incumbira. O mercador não quisera
enviar a correspondência pelo correio de Rainerio, temendo que o abade lesse o
conteúdo antes de o mandar entregar ao destinatário. Daí que tivesse preferido
que ela fosse secretamente expedida da vizinha Pomposa, onde ninguém o
conhecia. Enquanto o francês mergulhava nestes pensamentos, o barqueiro observava
entre uma e outra remadela a bainha de uma espada curva que despontava por
entre o seu manto. Parecia a arma de um sarraceno. Teve o cuidado de disfarçar,
no entanto, a sua expressão curiosa não passou despercebida. Willalme virou-se
de repente, trespassou-o com um olhar gélido e voltou a esconder a espada com
um gesto seco. O barqueiro desviou os olhos rapidamente. Ninguém, nem um cão
raivoso, alguma vez o olhara daquele modo. Era já quase meio-dia quando o
francês se deu conta de que chegara ao destino. Assim que a embarcação tocou a
margem, saltou para terra e despediu-se do barqueiro. Enquanto se encaminhava
para a abadia, lembrou-se de ter ouvido Ignazio falar daquele lugar: era um dos
templos beneditinos mais afamados da península, conhecido como monasterium in Italia primum. Não que
ele desse muita importância ao facto. Aproximou-se de um monge e cumprimentou-o
gentilmente.
Perdoai,
padre, tenho urgência em fazer chegar uma carta a Veneza. E tenciono pernoitar
aqui até obter uma resposta. Trata-se de uma urgência, especificou, empregando
as palavras que Ignazio lhe recomendara. A quem poderei dirigir-me? Pedi ao
guardião, filho, respondeu o beneditino. No entanto, se vos apressardes,
podereis entregar a carta àqueles marinheiros, ali ao fundo. Estais a vê-1os?
Vão direitos a Pavia, mas antes farão escala em Veneza. Depois de ter
agradecido, Willalme correu na direcção dos homens que o monge lhe indicara.
Estavam ocupados a carregar sacos de sal para dentro de uma embarcação atracada
na margem de um canal.
Ignazio
tinha acabado de falar. Observava Rainerio pelo canto do olho, à espera de um
sinal de despedida, quando, subitamente, uma das portas da sala se abriu
deixando entrar um monge pequeno e atarracado, de rosto rubicundo emoldurado
por uma coroa de cabelo preto. Devia andar pelos sessenta anos, mas os traços
recordaram os de um miúdo. O recém-chegado inclinou a cabeça saudando o
mercador e depois dirigiu-se ao abade com um ar impaciente. Exprimiu-se num
latim colorido com um acento toscano: pater,
sois esperado no refeitório. O almoço vai ser servido. - Não me parecia assim
tão tarde. Rainerio apontou na direcção do mercador. É Ignazio de Toledo, um
amigo vindo de muito longe. Deveis ter reparado nele ontem à noite, no
refeitório, sentado ao meu lado. Ouvi falar de vós, mestre Ignazio. O abade
Maynulfo de Silvacandida tinha grande consideração por vós. O monge
interrogou-se sobre o mau humor que ensombrava o olhar de Rainerio; parecia
contrariado e não lhe agradava vê-lo assim. Sou Gualimberto de Prataglia,
amanuense e bibliotecário. Peço desculpa pela minha intromissão. Interrompi
alguma coisa importante?» In Marcello Simoni, O Mercador de Livros
Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-224-029-4.
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