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«(…)
O Lincoln havia sido discretamente estacionado perto da fogueira e ninguém viu
Umberto por minha velha mochila no porta-malas, antes de abrir a porta traseira
com deliberada cerimónia. Quero me sentar na frente. Por favor! Ele balançou a
cabeça com ar reprovador e abriu a porta do carro: Eu sabia que tudo ia
desmoronar. Mas nunca tinha sido tia Rose quem insistira na formalidade. Embora
Umberto trabalhasse para ela, sempre havia sido tratado como uma pessoa da família.
Mas nunca retribuíra da mesma forma. Toda vez que tia Rose o convidava a se
sentar connosco à mesa de jantar, Umberto simplesmente a fitava com intrigada
tolerância, como se, para ele, fosse um eterno mistério o facto de ela continuar,
a convidá-lo e, de algum modo, simplesmente não entender. Umberto fazia todas
refeições na cozinha: sempre fora e sempre seria assim, e nem mesmo o nome de
Cristo, proferido com exasperação crescente, era capaz de convencê-lo a se
sentar connosco, nem sequer no Dia de Acção de Graças. Tia Rose desdenhava essa
peculiaridade de Umberto como coisa de europeu, o que emendava sem esforço com
um discurso sobre tirania, liberdade e independência, que inevitavelmente
culminava em ela nos apontar o garfo e rosnar e é por isso que não passaremos
as férias na Europa. Especialmente na Itália. Fim de conversa. Pessoalmente, eu
tinha quase certeza de que Umberto preferia fazer as refeições sozinho apenas
por considerar sua própria companhia muito superior ao que tínhamos a oferecer.
Ficava lá na cozinha, tranquilo com sua ópera, seu vinho e seu pedaço de queijo
parmesão perfeitamente curado, enquanto nós, tia Rose, Janice e eu, trocávamos
farpas e tiritávamos de frio na sala de jantar. Se eu pudesse, também teria
passado todos os minutos de todos os dias na cozinha.
Ao
cruzarmos o escuro vale do Shenandoah nessa noite, Umberto me falou das últimas
horas de tia Rose. Ela havia morrido serenamente, durante o sono, depois de uma
noite em que ouvira todas as suas canções favoritas de Fred Astaire, em seus
discos cheios de estalos. Ao se extinguir o último acorde da última melodia,
ela se levantara e abrira a porta dupla envidraçada que dava para o jardim,
quem sabe querendo aspirar mais uma vez o perfume das madressilvas. Enquanto
ficou parada ali, de olhos fechados, contou-me Umberto, as longas cortinas de
renda tremularam em volta de seu corpo esguio sem fazer nenhum som, como se ela
já fosse um fantasma. Será que fiz a coisa certa?, perguntara ela, baixinho. É
claro que fez, fora a resposta diplomática de Umberto. Era meia-noite quando
deslizamos pela entrada de automóveis da casa de tia Rose. Umberto já me
avisara que Janice tinha chegado da Flórida naquela tarde, com uma calculadora e
uma garrafa de champanhe. Mas isto não explicava o segundo carro desportivo
estacionado bem em frente à porta. Espero sinceramente que não seja aquele
agente funerário, comentei, tirando a mochila da mala antes que Umberto pudesse
chegar a ela. Mal pronuncie as palavras, estremeci diante de minha própria
irreverência. Era completamente difícil eu falar assim, o que só acontecia
quando estava perto de minha irmã. Olhando apenas de relance para o carro
misterioso, Umberto ajeitou o casaco como quem ajusta um colete à prova de
balas antes do combate: receio que existam muitos tipos de agentes. Tão logo
cruzamos a porta de entrada da casa de tia Rose, percebi o que ele queria
dizer. Todos os enormes retratos do vestíbulo tinham sido retirados da parede e
estavam encostados nela, como delinquentes diante de um pelotão de fuzilamento.
E o vaso veneziano que sempre estivera na mesa redonda sob o lustre havia
sumido. Olá, gritei, sentindo uma onda de raiva que não experimentava desde a última
vez que tinha ido lá. Ainda há alguém vivo? Minha voz ecoou pela casa
silenciosa, mas, tão logo o eco se extinguiu, ouvi pés apressados no corredor
de cima. Apesar da corridinha culpada, porém, Janice teve que fazer sua
habitual aparição em câmara lenta na escadaria larga, como diáfano vestido de
verão enfatizando suas curvas sumptuosas muito mais do que se ela não estivesse
usando nada. Com uma pausa para a imprensa internacional, ela jogou os cabelos
compridos para trás com lânguida presunção e me lançou um sorriso desdenhoso
antes de começar a descer. Ora, vejam, observou, com a voz meigamente gélida, a
virgentariana ainda está viva. Só então notei o macho da semana vindo atrás
dela, com o mesmo ar desgrenhado e de olhos injectados de todos os que passavam
algum tempo a sós com minha irmã». In Anne Fortier, Julieta, Editorial Planeta,
ISBN 978-989-657-127-6, Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.
Cortesia de
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