terça-feira, 23 de agosto de 2016

O Diário Perdido de Don Juan. Douglas Carlton Abrams. «Mais um beijo, rogou Elvira, puxando com brandura pela manga do meu gibão castanho-avermelhado, enquanto lestamente eu tratava de me vestir. Estava atrasado»

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A paixão é uma arte. O amor é uma aventura
«Escrevo nas páginas nuas deste diário para que a verdade venha a ser conhecida e a minha sorte não fique à mercê dos rumores e mentiras que já sopram pelas ruas de Sevilha. Quando morrer, muitos serão, estou certo, os que hão-de esforçar-se por fazer da minha vida uma moralidade, mas vida alguma pode ser tão facilmente compreendida ou enjeitada. Não me arriscaria a inscrever os meus segredos neste diário não fosse o meu amigo e protector don Pedro, marquês de la Mota, a tal me ter instigado. Objectei que nada do que escrevesse poderia ser lido enquanto fosse vivo sem que o Tribunal do Santo Ofício (maldito) me condenasse à fogueira. Ontem ainda o inquisidor em pessoa marcou a fogo semelhante perigo na minha imaginação. Terá sido porventura tão recente ameaça, ou o ultimato do rei, que enfim me moveu a pegar na pena e a embebê-la na tinta que ora dá forma a estas palavras. Insistiu o marquês em que é para bem da posteridade que devo escrever um diário, pois que a imoralidade verdadeira é nossa reputação. Mal seria, porém, apenas por vaidade que haveria de o escrever. Trinta e seis anos são passados desde o meu nascimento, ou, mais precisamente, desde que a minha mãe me expôs, envolto em faixas, no celeiro do Convento de la Madre Sagrada. É decerto sinal da idade ter permitido, pela primeira vez na vida, que me persuadissem a considerar de que maneira serei lembrado. Outro desejo, entretanto, me leva de igual modo a escrever: o de legar o que aprendi sobre as artes da paixão e a santidade da mulher. Visto que renunciei ao matrimónio e não tenho herdeiros de meu sangue, forçoso me é olhar para quantos vierem depois de mim como meus descendentes e tentar partilhar com eles quanto aprendi junto das mulheres que tive o privilégio de tão bem conhecer.
As recordações de um homem inclinam-se sempre para o louvor de si mesmo, por isso não irei valer-me somente do meu próprio testemunho mas transcrever, com roda a fidelidade possível, não apenas os casos mas também as palavras bradadas durante um duelo ou sussurradas durante um encontro apaixonado. É o sobredito orgulho que me leva a principiar o meu relato pelo mais ousado feito de sedução que jamais empreendi. Era minha ambição nada menos que libertar da sua clausura, no Alcázar, a casta e solitária filha do rei, por uma noite. Sabia que, sendo descoberto, teria o privilégio, na minha qualidade de homem nobre, de pousar a cabeça no cepo do carrasco e escapar dessa forma à desonra da forca. A ambição de um homem, todavia, como o seu destino, nem sempre é dele conhecida antes do tempo, e, ao deixar os braços da viúva Elvira, não tinha o menor augúrio dos riscos que, a noite passada, sobre mim pesavam.

Mais um beijo, rogou Elvira, puxando com brandura pela manga do meu gibão castanho-avermelhado, enquanto lestamente eu tratava de me vestir. Estava atrasado, não obstante ter sido avisado pelo marquês de que a minha vida dependia de estar presente na audiência do rei. A minha intenção de comparecer a tempo não podia ter sido mais firme, mas cedera ao descobrir que a jovem mulher que ontem à tarde tinha nos braços enviuvara por culpa do oceano. A sua solidão e o seu desejo não tinham conhecido refrigério nos longos cinco anos passados sobre a morre do marido. Só mais um, insistiu, agora com os lábios estendidos na direcção dos meus. Olhei o seu rosto sorridente e os seus negros cabelos, que o nosso desejo de há pouco deixara em desalinho. A limpidez dos seus olhos castanhos reflectia a chama das velas que cingiam o altar do leito. Como recusar semelhante pedido? Tomei-lhe as faces nas pontas dos dedos e aproximei-me, chegando-me ao seu rosto devagar, pois que tudo vai do antegosto. Rocei de leve os meus lábios nos seus e de seguida titilei com a ponta da língua o canto da sua boca. Tive o cuidado de a não sufocar de beijos para que não tivesse de se guardar do meu assalto. Provei-lhe o néctar orvalhado da boca quando me abriu as suas pétalas. Unidas as bocas, era palpável a sua sede, intenso o seu arquejar. Com as nossas línguas e lábios, bebemos um do outro uma poção doce como o mel. Quando, ao cabo de longo tempo, me afastei, Elvira levitava, de olhos cerrados, porém com a sede mitigada». In Douglas Carlton Abrams, O Diário Perdido de Don Juan, 2007, Editorial Presença, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-233-768-7.

Cortesia de EPresença/JDACT