Cortesia
de wikipedia
O
mais cruel dos meses
«(…)
Coragem, experimente ir à casa de banho e escovar os dentes. A escova da sua
mulher deve estar lá. Disse que não costumava escovar os dentes com a escova de
um estranho e ele observou que uma esposa não é uma estranha. Na casa de banho me
vi no espelho. Pelo menos estava bastante seguro de que era eu porque os
espelhos, como se sabe, reflectem aquilo que têm diante de si. Uma cara branca
e escavada, a barba longa, duas olheiras assim. Estamos bem, não sei quem sou
mas descubro que sou um monstro. Não gostaria de me encontrar de noite em uma
rua deserta. Mister Hyde. Identifiquei dois objectos, um com certeza se chama
dentifrício e o outro escova de dentes. Preciso começar com o dentifrício e
espremer o tubinho. Agradabilíssima sensação, deveria fazê-lo mais vezes, porém
a certa altura é preciso parar, aquela pasta branca no começo faz flop, como
uma bolha, mas depois sai toda, como le serpent qui danse. Não espremer mais,
senão vai fazer como Broglio com os stracchini. Quem é Broglio? A pasta tem um
óptimo sabor. Óptimo, disse o duque. É um welie-rismo. Estes são, então, os
sabores: algo que lhe acaricia a língua, mas também o palato, porém quem
percebe os sabores é a língua. Sabor de menta, y la bierbabuena, a las cinco de
la tarde... Decidi e fiz o que todos fazem nesses casos, rapidamente e sem
pensar muito: escovei primeiro para cima e para baixo, depois da esquerda para
a direita, depois o céu da boca. É interessante sentir as cerdas que entram
entre dois dentes, creio que de agora em diante vou escovar os dentes todo dia,
é bom. Passei as cerdas na língua também. Sente-se como um arrepio mas no final
se não apertar demais é bom, e era o que eu precisava pois minha boca estava
mesmo empastada. Agora, disse comigo mesmo, é enxaguar. Derramei um pouco
d'água da torneira num copo e passei na boca, alegremente surpreso com o
barulho que fazia, melhor ainda jogando-se a cabeça para trás e fazendo...,
borbulhar? O gargarejo é bom. Inchei as bochechas e depois tudo para fora.
Cuspi tudo. Sfrussc..., catarata. Com os lábios pode-se fazer de tudo, são
mobilíssimos. Virei-me, lá estava Gratarolo me observando como se fosse um fenómeno
de circo, e perguntei se estava tudo certo. Perfeito, disse ele. Meus
automatismos, explicou, estão correctos. Parece que temos aqui uma pessoa quase
normal, observei, salvo que talvez não seja eu. Muito espirituoso, e isso
também é um bom sinal. Deite-se, assim, eu ajudo. Diga-me: o que o senhor acabou
de fazer? Escovei os dentes, foi o senhor quem pediu. Certo, e antes de escovar
os dentes? Estava aqui nessa cama e o senhor estava falando comigo. Disse-me
que estamos em Abril, 1991. Correcto. A memória a curto prazo funciona. Diga-me,
lembra por acaso da marca do dentifrício? Não. Deveria? Não, claro que não. O
senhor certamente viu a marca ao pegar o tubo, mas se tivéssemos que registar e
conservar todos os estímulos que recebemos, nossa memória seria uma barafunda.
Por isso escolhemos, filtramos. O senhor fez o que todos fazem. Mas tente
recordar a coisa mais significativa que lhe aconteceu enquanto escovava os
dentes. Quando passei a escova na língua. Por quê? Porque estava com a boca
empastada e depois me senti bem melhor. Viu? Filtrou o elemento mais directamente
associado às suas emoções, a seus desejos, a seus objectivos. O senhor tem
emoções de novo. Bela emoção escovar a língua. Mas não me lembro de tê-la
escovado antes. Chegaremos lá. Veja, senhor Bodoni, vou tentar explicar-lhe sem
palavras difíceis, mas o acidente certamente atingiu algumas zonas de seu
cérebro. No momento, embora todo dia saia um novo estudo, ainda não sabemos
tudo o que gostaríamos de saber sobre as localizações cerebrais. Sobretudo no
que diz respeito às várias formas de memória. Ousaria dizer que se isso que lhe
aconteceu acontecesse daqui a dez anos, saberíamos melhor como lidar com sua
situação. Não me interrompa, eu já entendi, se tivesse acontecido cem anos atrás
o senhor já estaria num manicómio, e fim da história. Hoje sabemos bem mais,
porém não o bastante. Por exemplo, se o senhor não conseguisse falar eu logo saberia
qual a área atingida...» In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha
Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN
978-850-107-143-9.