terça-feira, 2 de agosto de 2016

A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Umberto Eco. «Decidi e fiz o que todos fazem nesses casos, rapidamente e sem pensar muito: escovei primeiro para cima e para baixo, depois da esquerda para a direita, depois o céu da boca»

Cortesia de wikipedia

O mais cruel dos meses
«(…) Coragem, experimente ir à casa de banho e escovar os dentes. A escova da sua mulher deve estar lá. Disse que não costumava escovar os dentes com a escova de um estranho e ele observou que uma esposa não é uma estranha. Na casa de banho me vi no espelho. Pelo menos estava bastante seguro de que era eu porque os espelhos, como se sabe, reflectem aquilo que têm diante de si. Uma cara branca e escavada, a barba longa, duas olheiras assim. Estamos bem, não sei quem sou mas descubro que sou um monstro. Não gostaria de me encontrar de noite em uma rua deserta. Mister Hyde. Identifiquei dois objectos, um com certeza se chama dentifrício e o outro escova de dentes. Preciso começar com o dentifrício e espremer o tubinho. Agradabilíssima sensação, deveria fazê-lo mais vezes, porém a certa altura é preciso parar, aquela pasta branca no começo faz flop, como uma bolha, mas depois sai toda, como le serpent qui danse. Não espremer mais, senão vai fazer como Broglio com os stracchini. Quem é Broglio? A pasta tem um óptimo sabor. Óptimo, disse o duque. É um welie-rismo. Estes são, então, os sabores: algo que lhe acaricia a língua, mas também o palato, porém quem percebe os sabores é a língua. Sabor de menta, y la bierbabuena, a las cinco de la tarde... Decidi e fiz o que todos fazem nesses casos, rapidamente e sem pensar muito: escovei primeiro para cima e para baixo, depois da esquerda para a direita, depois o céu da boca. É interessante sentir as cerdas que entram entre dois dentes, creio que de agora em diante vou escovar os dentes todo dia, é bom. Passei as cerdas na língua também. Sente-se como um arrepio mas no final se não apertar demais é bom, e era o que eu precisava pois minha boca estava mesmo empastada. Agora, disse comigo mesmo, é enxaguar. Derramei um pouco d'água da torneira num copo e passei na boca, alegremente surpreso com o barulho que fazia, melhor ainda jogando-se a cabeça para trás e fazendo..., borbulhar? O gargarejo é bom. Inchei as bochechas e depois tudo para fora. Cuspi tudo. Sfrussc..., catarata. Com os lábios pode-se fazer de tudo, são mobilíssimos. Virei-me, lá estava Gratarolo me observando como se fosse um fenómeno de circo, e perguntei se estava tudo certo. Perfeito, disse ele. Meus automatismos, explicou, estão correctos. Parece que temos aqui uma pessoa quase normal, observei, salvo que talvez não seja eu. Muito espirituoso, e isso também é um bom sinal. Deite-se, assim, eu ajudo. Diga-me: o que o senhor acabou de fazer? Escovei os dentes, foi o senhor quem pediu. Certo, e antes de escovar os dentes? Estava aqui nessa cama e o senhor estava falando comigo. Disse-me que estamos em Abril, 1991. Correcto. A memória a curto prazo funciona. Diga-me, lembra por acaso da marca do dentifrício? Não. Deveria? Não, claro que não. O senhor certamente viu a marca ao pegar o tubo, mas se tivéssemos que registar e conservar todos os estímulos que recebemos, nossa memória seria uma barafunda. Por isso escolhemos, filtramos. O senhor fez o que todos fazem. Mas tente recordar a coisa mais significativa que lhe aconteceu enquanto escovava os dentes. Quando passei a escova na língua. Por quê? Porque estava com a boca empastada e depois me senti bem melhor. Viu? Filtrou o elemento mais directamente associado às suas emoções, a seus desejos, a seus objectivos. O senhor tem emoções de novo. Bela emoção escovar a língua. Mas não me lembro de tê-la escovado antes. Chegaremos lá. Veja, senhor Bodoni, vou tentar explicar-lhe sem palavras difíceis, mas o acidente certamente atingiu algumas zonas de seu cérebro. No momento, embora todo dia saia um novo estudo, ainda não sabemos tudo o que gostaríamos de saber sobre as localizações cerebrais. Sobretudo no que diz respeito às várias formas de memória. Ousaria dizer que se isso que lhe aconteceu acontecesse daqui a dez anos, saberíamos melhor como lidar com sua situação. Não me interrompa, eu já entendi, se tivesse acontecido cem anos atrás o senhor já estaria num manicómio, e fim da história. Hoje sabemos bem mais, porém não o bastante. Por exemplo, se o senhor não conseguisse falar eu logo saberia qual a área atingida...» In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.

Cortesia de Difel/ERecord/JDACT