Cortesia
de wikipedia e jdact
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Este enigma começa na noite de 2 de Janeiro de 1497, longe, muito longe do Egipto.
Aquele inverno de quatro décadas atrás foi o mais frio de que se tem notícia.
Havia nevado copiosamente e toda a Lombardia estava coberta por um grosso manto
branco. Os conventos de Santo Ambrósio, São Lorenzo e Santo Eustórgio e, inclusive,
os pináculos da catedral haviam desaparecido sob a névoa. As carroças de lenha
eram a única coisa que se movia nas ruas, e metade de Milão cochilava envolvida
em um silêncio que parecia estar instalado ali havia séculos. Foi por volta das
11 da noite do segundo dia do ano. Um grito lancinante de mulher quebrou a
gelada paz do castelo dos Sforza. Ao grito logo se seguiu um soluço, e a estes
o agudo pranto das carpideiras do palácio. O último estertor da sereníssima
Beatrice d’Este, uma jovem na flor da vida, a bela esposa do duque de Milão,
havia destruído para sempre os sonhos de glória do reino. Santo Deus! A duquesa
morreu de olhos arregalados. Furiosa. Amaldiçoando Cristo e todos os santos por
levá-la tão cedo para junto d’Ele e agarrando com força o hábito de seu horrorizado
confessor. Sim. Definitivamente, foi aí que tudo começou.
Eu
tinha 45 anos quando li pela primeira vez o informe do ocorrido naquele dia.
Era um relato impressionante. Betânia, como era de hábito, o havia solicitado, por
conduto secretissimus, ao capelão da
corte do Mouro, e este, sem perder um só dia, enviara-o a Roma a toda
velocidade. Os ouvidos e os olhos dos Estados Pontifícios funcionavam assim.
Eram rápidos e eficazes como os de nenhum outro país.
E, muito antes que o anúncio oficial da morte da
princesa chegasse ao gabinete diplomático do Santo Padre, nossos irmãos já
tinham todos os detalhes em seu poder. Naquela época, minha responsabilidade
dentro da complexa estrutura de Betânia era de ad latere [assistente] do prior geral da Ordem de São Domingos. Nossa
organização sobrevivia dentro das estreitas margens da confidencialidade.
Em um tempo marcado por intrigas palacianas, envenenamentos e traições de família,
a Igreja precisava de um serviço de informação que lhe permitisse saber onde
podia pôr os pés. Éramos uma ordem secreta, fiel só ao papa e à
cabeça visível dos dominicanos. Por isso, externamente, quase ninguém ouvira
falar de nós. Escondíamo-nos atrás do amplo manto da Secretaria de Códigos dos
Estados Pontifícios, um organismo neutro, marginal, de pouca presença pública e
com competências muito limitadas. Contudo, das portas para dentro,
funcionávamos como uma congregatio de
informações. Uma espécie de comissão permanente para a análise de assuntos de
governo que pudessem permitir ao Santo Padre se antecipar aos movimentos de
seus muitos inimigos. Qualquer notícia, por menor que fosse, que pudesse afectar
o status quo da Igreja passava
imediatamente por nossas mãos, era avaliada e transmitida à autoridade
pertinente. Essa era nossa única missão.
Nesse
âmbito, tive acesso ao informe da morte de nossa adversária, donna Beatrice
d’Este. Ainda posso ver o rosto dos irmãos celebrando a notícia. Ignorantes.
Pensavam que a natureza havia nos poupado o trabalho de ter de matá-la. A mente
deles era simples assim. Funcionava a golpe de cadafalso, de condenação do
Santo Ofício ou de verdugo mercenário. Mas esse não era o meu caso. Diferente
deles, eu não tinha tanta certeza de que a partida da duquesa de Milão significasse
o final da longa cadeia de irregularidades, conspirações e ameaças contra a fé
que pareciam se esconder na corte do Mouro e que havia meses alertavam nossa
rede de informação. De facto, bastava citar seu nome em alguma das assembleias
gerais de Betânia para que os rumores dominassem o resto da reunião. Todos a
conheciam. Todos sabiam de suas actividades pouco cristãs, mas ninguém jamais
se atrevera a denunciá-la. Era tal o temor que donna Beatrice inspirava em Roma
que nem sequer o informe que recebemos do capelão do duque, que era também fiel
prior de nosso novo convento de Santa Maria delle Grazie, se pronunciava a
respeito de suas andanças pouco ortodoxas. Coube a frei Vicenzo Bandello,
reputado teólogo e sábio condutor dos dominicanos milaneses, descrever o
sucedido, mantendo-se afastado de questões políticas que o pudessem
comprometer. Ninguém em Roma recriminou sua prudência. Segundo o informe
assinado pelo prior Bandello, tudo esteve em ordem até às vésperas da tragédia.
Até então, a jovem Beatrice tinha tudo: um marido poderoso, uma vitalidade
exuberante e um bebé a caminho que logo perpetuaria o nobre sobrenome do pai.
Ébria de felicidade, havia passado sua última tarde circulando de salão em
salão, brincando com sua dama de companhia favorita no palácio Rochetta. A
duquesa vivia alheia às preocupações comuns a qualquer mãe de seus territórios.
Nem sequer amamentaria o bebé para não estragar seus seios pequenos e
delicados; uma ama selecionada com cuidado se encarregaria de tutelar o crescimento
da criança, de ensiná-la a caminhar, a comer, e madrugariapara acordá-la e
limpá-la com água e panos quentes. Ambos, bebé e preceptora viveriam em
Rochetta, em um aposento que Beatrice havia decorado com interesse. Para ela, a
maternidade era um jogo salutar e inesperado, isento de responsabilidades e
incertezas.
Mas
foi justamente ali, no pequeno paraíso que havia imaginado para seu rebento,
que lhe sobreveio a desgraça. Segundo frei Vicenzo, antes do anoitecer de São
Basílio, donna Beatrice caiu desmaiada sobre um dos leitos do aposento. Ao voltar
a si, sentiu-se mal. Sua cabeça girava e ao mesmo tempo seu estômago lutava
para se esvaziar entre engulhos longos e estéreis. Sem saber que tipo de mal a
acometia, ao vómito logo se seguiram fortes contracções no baixo-ventre que anunciavam
o pior. O filho do Mouro havia decidido antecipar sua chegada ao mundo sem que
ninguém houvesse previsto essa contingência. Pela primeira vez, Beatrice se
assustou». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN
978-854-220-327-1.
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