segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «À diferença dos demais passageiros, Caridad não presenciou a difícil manobra náutica que requeria três mudanças de rumo no estreito canal. Ao longo da desembocadura do Guadalquivir…»

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Porto de Cádis, 7 de Janeiro de 1748
«(…) À lembrança de Marcelo, humedeceram-se-lhe os olhos. Tenteou em sua trouxa em busca da pederneira, do fuzil e da isca para fazer fogo. Permitiriam que fumasse? Na plantação podia fazê-lo, era algo habitual. Havia chorado Marcelo durante a travessia. Até…, até havia sentido a tentação de lançar-se ao mar para pôr fim àquele constante sofrimento. Afasta-te daí, negra! Queres cair na água?, advertiu-lhe um dos marinheiros. E ela obedeceu e se separou da borda. Haveria tido coragem para jogar-se se não houvesse aparecido aquele marinheiro? Não quis pensar no assunto uma vez mais; em lugar disso, observou os homens da tartana: via-os nervosos. A preia mar havia começado, mas os ventos não a acompanhavam. Alguns fumavam. Bateu com destreza o fuzil sobre a pederneira, e a isca não tardou a acender-se. Onde encontraria as árvores com cuja casca e fungos fabricava a isca? Acendeu o charuto, aspirou profundamente e pensou que tampouco sabia onde poderia conseguir tabaco. A primeira passa tranquilizou sua mente. As duas seguintes conseguiram que seus músculos se relaxassem, e caiu numa tênue tontura. Negra, convidas-me a fumar? Um grumete estava acocorado diante dela, tinha o rosto sujo mas vivaz e agradável. Por alguns instantes Caridad se deixou embalar pelo sorriso com que o rapaz esperava sua resposta e só viu seus dentes brancos, iguais aos de Marcelo quando se lançava em seus braços. Havia tido outro filho, um mulato nascido do senhor, mas José o vendeu assim que deixou de necessitar dos cuidados do par de velhas que se ocupavam dos filhos das escravas enquanto estas trabalhavam. Todos seguiam o mesmo caminho: o senhor não queria manter negrinhos. Marcelo, seu segundo filho, concebido com um negro do moinho, havia sido diferente: um parto difícil; um menino com problemas. Ninguém o comprará, afirmou o senhor quando, já criado, se manifestaram sua falta de habilidade e suas deficiências. Consentiu-se que ficasse na fazenda como se fosse um simples cão, uma galinha ou algum dos porcos que criavam atrás da cabana. Morrerá, auguravam todos. Mas Caridad não permitiu que isso sucedesse, muitas foram as pauladas e chicotadas que levou quando a descobriam alimentando-o. Nós te damos de comer para que trabalhes, não para que cries um imbecil, repetia-lhe o capataz. Negra, convidas-me a fumar?, insistiu o grumete. Porque não?, perguntou-se Caridad. Era o mesmo sorriso de seu Marcelo. Ofereceu-lhe o charuto. Excelente! De onde tiraste esta maravilha?, exclamou o rapaz depois de prová-lo e tossir. de Cuba? Sim, ouviu-se dizer Caridad enquanto voltava a pegar o charuto e o levava aos lábios. Como te chamas? Caridad, respondeu ela entre uma nuvem de fumo. Gosto de teu chapéu. O rapaz se movia inquieto sobre as pernas. Esperava outra passa, que afinal chegou. Já sopra! O grito do capitão da tartana rompeu a quietude. Das demais naus se ouviram exclamações similares. Soprava vento do sul, suficiente para enfrentar a barra. O grumete lhe devolveu o charuto e correu para unir-se aos outros marinheiros. Obrigado, pretinha, disse-lhe apressadamente.
À diferença dos demais passageiros, Caridad não presenciou a difícil manobra náutica que requeria três mudanças de rumo no estreito canal. Ao longo da desembocadura do Guadalquivir, em terra ou nas barcaças que se achavam amarradas em suas margens, acenderam-se sinais luminosos para guiar as embarcações. Tampouco viveu a tensão com que todos enfrentaram a travessia: se o vento amainava e ficavam no meio de caminho, existiam muitas possibilidades de encalhar. Permaneceu sentada contra a borda, fumando, a desfrutar de um agradável formigueiro em todos os seus músculos e deixando que o tabaco nublasse os sentidos. No momento em que a tartana se introduziu no temível Canal dos Ingleses, com a torre de São Jacinto iluminando seu rumo a bombordo, Caridad começou a cantarolar ao compasso da lembrança de suas festas dominicais, quando, depois de celebrar a missa no engenho de açúcar mais próximo que dispunha de sacerdote, os escravos das diversas fazendas se reuniam no barracão da fazenda a que haviam ido com seus senhores. Ali os brancos lhes permitiam cantar e dançar, como se fossem crianças que necessitassem espairecer e esquecer a dureza de seus trabalhos. Mas a cada som e a cada passo de dança, quando falavam os tambores batás, a mãe de todos eles, o grande tambor iyá, o itótele, ou o menor, o okónkolo, os negros rendiam culto a seus deuses, disfarçados de virgens e santos cristãos, e recordavam com nostalgia as suas origens africanas». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, tradução de Rita Custódio e Alex Tarradellas, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia BertrandE/JDACT