segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A Feiticeira de Florença. Salman Rushdie. «… bendita a primeira doce aflição que tive ao ser com Amor dominado, o arco e flecha com que fui perfurado, e as chagas que trago no coração»

jdact e wikipedia

«(…) Até mesmo o próprio milorde escocês, George Louis Hauksbank, lorde Hauksbank desse nome, o que quer dizer, segundo o costume escocês, Hauksbank de Hauksbank, um nobre a não se confundir com outros Hauksbank menores, mais ignóbeis, de locais inferiores, foi rapidamente seduzido quando levaram o intruso arlequim à sua cabine para julgamento. Naquele momento, o jovem malandro chamava a si mesmo de Uccello, Uccello di Firenze, mágico e pensador, a seu serviço, disse em inglês perfeito, com uma curvatura ampla e profunda de perícia quase aristocrática, e lorde Hauksbank sorriu e aspirou seu lenço perfumado. O que eu podia acreditar, mago, respondeu, se não conhecesse o pintor Paolo do mesmo nome e lugar, que criou em sua cidade o afresco trompe-l’oeil do Duomo em honra de meu próprio ancestral sir John Hauksbank, conhecido como Giovanni Milano, mercenário, antigo general de Florença, vencedor da batalha de Polpetto; e se esse pintor não tivesse, infelizmente, morrido há muitos anos. O jovem malandro discordou com um estalo irónico da língua. Evidente que não sou o artista morto, declarou, arrogante. Escolhi esse pseudónimo di viaggio porque na minha língua é a palavra que temos para pássaro, e pássaros são os maiores viajantes. Então tirou do peito um falcão escondido, do ar uma luva de falcoeiro e entregou ambos ao assombrado lorde. Um falcão para o lorde Barra do Falcão, Hauksbank, disse, com perfeito formalismo, e então, quando lorde Hauksbank havia calçado a luva e tinha o falcão sobre ela, ele, Uccello, estalou os dedos como uma mulher que retira o seu amor, com o que, para grande desapontamento do milorde escocês, ambos desapareceram, o pássaro enluvado e a luva empassarada. Além disso, continuou o mágico, retomando a questão de seu nome, porque em minha cidade esse véu de uma palavra, esse pássaro oculto, é um delicado eufemismo para o órgão sexual masculino, e tenho orgulho do que possuo mas não tenho o mau gosto de mostrar. Ha! Ha!, gritou lorde Hauksbank desse nome, recuperando a pose com admirável rapidez. Isso agora nos dá algo em comum. Ele era um mui viajado milorde, esse Hauksbank desse Nome, e mais velho do que parecia. Tinha um olho brilhante e a pele clara, mas já estava a sete anos ou mais de seus quarenta anos. Sua habilidade com a espada era proverbial, era forte como um touro branco e tinha viajado de jangada até à cabeceira do rio Amarelo no lago Kar Qu, onde comeu pénis de tigre guisado numa tigela de ouro e caçou o rinoceronte branco da cratera do Ngorongoro e escalou todos os duzentos e oitenta e quatro picos das Munros escocesas, de Ben Nevis até o Inacessível Pináculo de Sgurr Dearg na ilha de Skye, morada de Scáthach, a Terrível. Há muito tempo, no castelo de Hauksbank, ele brigou com a esposa, uma mulherzinha feroz de cabelo vermelho encaracolado e queixo igual a um quebra-nozes holandês, deixou-a nas Highlands a pastorear ovelhas negras e partiu em busca de sua fortuna como seus ancestrais antes dele, capitaneando um navio a serviço de Drake quando piratearam o ouro das Américas dos espanhóis no mar do Caribe. Sua recompensa de uma rainha agradecida havia sido a embaixada da qual agora se ocupava; precisava ir ao Hindustão, onde tinha carta branca para recolher e conservar qualquer riqueza que pudesse encontrar, fosse em pedras preciosas, ópio ou ouro, contanto que entregasse uma carta pessoal da Gloriana ao rei e trouxesse de volta a resposta do Mogol. Na Itália, dizemos Mogor, contou o jovem prestidigitador. Na língua impronunciável da própria terra, lorde Hauksbank completou, quem sabe como a palavra pode ser torcida, amarrada e revirada?
Um livro selou a amizade deles: o Canzoniere, de Petrarca, uma edição que se achava, como sempre, ao alcance da mão do milorde escocês numa mesinha de pietra dura. Ah,  o poderoso Petrarca, Uccello gritou. Esse, sim, é um verdadeiro mágico. E assumindo a pose de oratória de um senador romano, começou a declamar:

Benedetto sia ’l giorno, et ’l mese, et l’anno,
et la stagione, e ’l tempo, et l’ora, e ’l punto,
e ’l bel paese, e ’l loco ov’io fui giunto
da’duo begli occhi che legato m’ànno...

Diante disso, lorde Hauksbank pegou o fio do soneto:

… bendita a primeira doce aflição
que tive ao ser com Amor dominado,
o arco e flecha com que fui perfurado,
e as chagas que trago no coração.

Qualquer homem que ame esse poema como eu amo, será meu senhor, disse Uccello fazendo uma reverência. E qualquer homem que sinta o que sinto por essas palavras beberá comigo, retrucou o escocês. Você girou a chave que abre meu coração. Agora tenho de contar a você um segredo que você não revelará nunca a ninguém. Venha comigo. Numa pequena caixa de madeira escondida atrás de um painel deslizante em seu quarto de dormir, lorde Hauksbank desse Nome conservava uma colecção de objetos de virtude, lindas pecinhas sem as quais um homem que viaja constantemente pode perder o rumo, porque viajar demais, como lorde Hauksbank bem sabia, ou estranhezas e novidades demais, podem soltar as amarras da alma. Estas coisas não são minhas, ele disse a seu novo amigo florentino, mas elas me lembram quem sou. Ajo como zelador delas por algum tempo, e quando esse tempo termina deixo que se vão». In Salman Rushdie, A Feiticeira de Florença, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-692-4.

Cortesia de PdQuixote/JDACT