jdact e wikipedia
«Sonhávamos nas noites ferozes
sonhos densos e violentos
sonhados de corpo e alma:
voltar; comer; contar.
Então soava breve e submissa
a ordem do amanhecer:
Wstavach;
e se partia no peito o coração.
Agora reencontramos a casa,
nosso ventre está saciado,
acabamos de contar.
É tempo. Logo ouviremos ainda
o comando estrangeiro:
Wstavach».
11 de Janeiro de 1946
«Nos primeiros dias de Janeiro de 1945, sob a pressão do Exército Vermelho, já nas proximidades, os alemães desocuparam às pressas a bacia mineira silesiana. Todavia, em outros lugares, e em análogas condições, não hesitaram em destruir com fogo ou com as armas o Lager, campo de concentração ou de extermínio, juntamente com os seus ocupantes; no distrito de Auschwitz agiram de maneira diversa: ordens superiores (ao que parece ditadas pessoalmente por Hitler) impunham a “recuperação”, a qualquer preço, de todos os homens aptos para o trabalho. Por isso, todos os prisioneiros sadios foram retirados, em condições assombrosas, para Buchenwald e Mauthausen, enquanto os doentes foram abandonados à própria sorte. A partir de vários indícios, é lícito deduzir a intenção primeira alemã de não deixar nos campos de concentração nenhum homem vivo; mas um violento ataque aéreo noturno e a rapidez da investida russa induziram os alemães a mudar de ideia, e a bater em retirada, deixando inacabados o próprio dever e a própria guerra. Na enfermaria do Lager de Buna-Monowitz chegávamos a oitocentos. Destes, cerca de quinhentos morreram das próprias doenças, do frio e da fome, antes que chegassem os russos, e outros duzentos, apesar dos socorros, nos dias imediatamente sucessivos. A primeira patrulha russa pôde ser vista do campo por volta de meio-dia de 27 de Janeiro de 1945. Charles e eu fomos os primeiros a avistá-la: estávamos transportando para a vala comum o corpo de Sómogyi, o primeiro morto dentre os nossos companheiros de quarto. Reviramos a padiola na neve infecta, pois a vala já estava cheia, e outra sepultura não era possível: Charles tirou o boné, para saudar os vivos e os mortos.
Eram quatro jovens soldados a cavalo, que agiam cautelosos, com as metralhadoras embraçadas, ao longo da estrada que demarcava os limites do campo. Quando chegaram ao arame farpado, detiveram-se, trocando palavras breves e tímidas, lançando olhares trespassados por um estranho embaraço, para observar os cadáveres decompostos, os barracões arruinados, e os poucos vivos. Pareciam-nos admiravelmente corpóreos e reais, suspensos (a estrada era mais alta do que o campo) em seus enormes cavalos, entre o cinza da neve e o cinza do céu, imóveis sob as rajadas do vento húmido que ameaçava o degelo. Parecia-nos, e assim era, que o nada atravessado de morte, no qual vagávamos fazia dez dias como astros esbatidos, tinha encontrado o seu próprio centro sólido, um núcleo de condensação: quatro homens armados, mas não armados contra nós; quatro mensageiros da paz, de rostos rudes e pueris sob os pesados capacetes de pelo. Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados, não somente por piedade, mas por uma confusa reserva, que selava as suas bocas e subjugava os seus olhos ante o cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as selecções, e todas as vezes que devíamos assistir a um ultraje ou suportá-la: a vergonha que os alemães não conheceram, aquela que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem, e se aflige que persista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem, e que a sua boa vontade tenha sido nula ou escassa, e não lhe tenha servido de defesa.
Assim, a hora da liberdade soou grave e acachapante, e inundou, a um só tempo, as nossas almas de felicidade e doloroso sentimento de pudor, razão pela qual quiséramos lavar nossas consciências e nossas memórias da sujeira que as habitava; e de sofrimento, pois sentíamos que isso já não podia acontecer, e que nada mais poderia acontecer de tão puro e bom para apagar o nosso passado, e que os sinais da ofensa permaneceriam em nós para sempre, nas recordações de quem a tudo assistiu, e nos lugares onde ocorreu, e nas histórias que iríamos contar. Porque, e este é o tremendo privilégio de nossa geração e do meu povo, ninguém pôde mais do que nós acolher a natureza insanável da ofensa, que se espalha como um contágio. É absurdo pensar que a justiça humana possa extingui-la. Ela é uma inexaurível fonte do mal: quebra o corpo e a alma dos esmagados, os destrói e os torna abjectos; recai como infâmia sobre os opressores, perpetua-se como ódio nos sobreviventes, e pulula de mil maneiras, contra a própria vontade de todos, como sede de vingança, como desmoronamento moral, como negação, como fadiga, como renúncia». In Primo Levi, A Trégua, 1963, Editorial Teorema, colecção Diário de Viagem, 2010, ISBN: 978-972-695-937-3.
«Nos primeiros dias de Janeiro de 1945, sob a pressão do Exército Vermelho, já nas proximidades, os alemães desocuparam às pressas a bacia mineira silesiana. Todavia, em outros lugares, e em análogas condições, não hesitaram em destruir com fogo ou com as armas o Lager, campo de concentração ou de extermínio, juntamente com os seus ocupantes; no distrito de Auschwitz agiram de maneira diversa: ordens superiores (ao que parece ditadas pessoalmente por Hitler) impunham a “recuperação”, a qualquer preço, de todos os homens aptos para o trabalho. Por isso, todos os prisioneiros sadios foram retirados, em condições assombrosas, para Buchenwald e Mauthausen, enquanto os doentes foram abandonados à própria sorte. A partir de vários indícios, é lícito deduzir a intenção primeira alemã de não deixar nos campos de concentração nenhum homem vivo; mas um violento ataque aéreo noturno e a rapidez da investida russa induziram os alemães a mudar de ideia, e a bater em retirada, deixando inacabados o próprio dever e a própria guerra. Na enfermaria do Lager de Buna-Monowitz chegávamos a oitocentos. Destes, cerca de quinhentos morreram das próprias doenças, do frio e da fome, antes que chegassem os russos, e outros duzentos, apesar dos socorros, nos dias imediatamente sucessivos. A primeira patrulha russa pôde ser vista do campo por volta de meio-dia de 27 de Janeiro de 1945. Charles e eu fomos os primeiros a avistá-la: estávamos transportando para a vala comum o corpo de Sómogyi, o primeiro morto dentre os nossos companheiros de quarto. Reviramos a padiola na neve infecta, pois a vala já estava cheia, e outra sepultura não era possível: Charles tirou o boné, para saudar os vivos e os mortos.
Eram quatro jovens soldados a cavalo, que agiam cautelosos, com as metralhadoras embraçadas, ao longo da estrada que demarcava os limites do campo. Quando chegaram ao arame farpado, detiveram-se, trocando palavras breves e tímidas, lançando olhares trespassados por um estranho embaraço, para observar os cadáveres decompostos, os barracões arruinados, e os poucos vivos. Pareciam-nos admiravelmente corpóreos e reais, suspensos (a estrada era mais alta do que o campo) em seus enormes cavalos, entre o cinza da neve e o cinza do céu, imóveis sob as rajadas do vento húmido que ameaçava o degelo. Parecia-nos, e assim era, que o nada atravessado de morte, no qual vagávamos fazia dez dias como astros esbatidos, tinha encontrado o seu próprio centro sólido, um núcleo de condensação: quatro homens armados, mas não armados contra nós; quatro mensageiros da paz, de rostos rudes e pueris sob os pesados capacetes de pelo. Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados, não somente por piedade, mas por uma confusa reserva, que selava as suas bocas e subjugava os seus olhos ante o cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as selecções, e todas as vezes que devíamos assistir a um ultraje ou suportá-la: a vergonha que os alemães não conheceram, aquela que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem, e se aflige que persista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem, e que a sua boa vontade tenha sido nula ou escassa, e não lhe tenha servido de defesa.
Assim, a hora da liberdade soou grave e acachapante, e inundou, a um só tempo, as nossas almas de felicidade e doloroso sentimento de pudor, razão pela qual quiséramos lavar nossas consciências e nossas memórias da sujeira que as habitava; e de sofrimento, pois sentíamos que isso já não podia acontecer, e que nada mais poderia acontecer de tão puro e bom para apagar o nosso passado, e que os sinais da ofensa permaneceriam em nós para sempre, nas recordações de quem a tudo assistiu, e nos lugares onde ocorreu, e nas histórias que iríamos contar. Porque, e este é o tremendo privilégio de nossa geração e do meu povo, ninguém pôde mais do que nós acolher a natureza insanável da ofensa, que se espalha como um contágio. É absurdo pensar que a justiça humana possa extingui-la. Ela é uma inexaurível fonte do mal: quebra o corpo e a alma dos esmagados, os destrói e os torna abjectos; recai como infâmia sobre os opressores, perpetua-se como ódio nos sobreviventes, e pulula de mil maneiras, contra a própria vontade de todos, como sede de vingança, como desmoronamento moral, como negação, como fadiga, como renúncia». In Primo Levi, A Trégua, 1963, Editorial Teorema, colecção Diário de Viagem, 2010, ISBN: 978-972-695-937-3.
Cortesia de
ETeorema/JDACT