quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A Mulher de Pedra. Tariq Ali. «Estava deitada na cama num quarto às escuras, uma compressa fria a cobrir-me o rosto e a testa. Estava a descansar, tentando acalmar uma forte dor de cabeça que teimava em não se ir embora»

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O Verão de 1899
«(…) Estava paralisado, incapaz de mexer as pernas, incapaz de pronunciar uma só palavra que fosse e, tal como o indicavam os seus olhos, os minutos que passava em estado de consciência eram gastos a implorar a Alá para que este pusesse fim à sua presença neste mundo. Alá ignorou as suas súplicas e, aos poucos, Iskander Pasha começou a recuperar. A vida regressou às suas pernas. Com a ajuda de Petrossian, recomeçou a andar, mas o dom da fala desaparecera para sempre. Nunca mais voltaríamos a escutar a sua voz. De então em diante, os seus pedidos e ordens passaram a ser escritos em pequenos pedaços de papel, os quais não eram levados numa pequena bandeja de prata.
Assim, todos os dias, depois da refeição do fim da tarde, reuníamo-nos em grupo no velho quarto com a varanda sobranceira ao mar. Uma vez confortavelmente instalados, o meu pai beberricava um pouco de chá pelo canto da boca, a trombose afectara-lhe cruelmente o rosto e, enquanto o neto de Petrossian, Akim, lhe ia massajando os pés com suavidade, ele recostava-se e insistia connosco para que lhe contássemos histórias. Sempre me fora difícil mostrar-me descontraída na presença do meu pai. Ele sempre se mostrara um homem exigente. Extremamente intolerante Para com a mais pequena crítica ao seu comportamento, passado ou presente, encontrava sempre defeitos nos outros.
Os meus irmãos e a minha irmã, que haviam sido convocados para junto do seu leito vindos de diferentes áreas do Império, mostravam-se convencidos de que a doença o transformaria em alguém menos intolerante. Eu tinha a certeza de que eles estavam enganados.

A melancolia de Salman
Estava deitada na cama num quarto às escuras, uma compressa fria a cobrir-me o rosto e a testa. Estava a descansar, tentando acalmar uma forte dor de cabeça que teimava em não se ir embora. Foi no dia em que Salman e Halil chegaram, para verem o nosso pai. Eu não me encontrava no terraço, junto com o resto da família e todos os criados, para os ver sair do nosso velho coche, que, flanqueado de ambos os lados por seis soldados de cavalaria, os transportara desde Istambul. posteriormente, a minha mãe contou-me o quanto a imagem do meu pai, sentado imóvel numa grande cadeira, os abalou. Ambos se deixaram cair de joelhos, cada um do seu lado da cadeira, e beijaram-lhe as mãos. Foi Halil, no seu uniforme de general, o primeiro a compreender que os silêncios depressa se podem tornar opressivos.
Sinto-me muito feliz por ainda estar vivo, Ata. Ninguém me poderia ter ajudado se Alá tivesse decidido fazer de nós órfãos. Este bruto do meu irmão teria dado ordens a Petrossian para que me estrangulasse com uma corda de seda. A ideia era de tal forma ridícula que o rosto do velhote se iluminou com um sorriso, um sinal para a ruidosa gargalhada que varreu toda a assembleia e me acordou bruscamente. Contudo, a dor de cabeça desaparecera e eu levantei-me da cama de um salto, humedeci o rosto com água e desci as escadas a correr para os cumprimentar. Cheguei a tempo de ver Halil apertar Orhan nos braços. Fez cócegas com o seu bigode no pescoço do rapaz e em seguida atirou-o ao ar, abraçando-o com carinho assim que ele voltava a descer. Depois apresentou Orhan ao tio que ele nunca vira. O meu filho fitou o novo tio com um sorriso tímido e, desajeitado, Salman deu uma palmadinha na cabeça do rapaz». In Tariq Ali, A Mulher de Pedra, 2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea, 2002/2003, ISBN 972-105-125-X.

Cortesia de PEAmérica/JDACT