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Paris.
1308
«(…)
O braço esquerdo foi puxado para cima e outro prego espetado no pulso. Mordeu a
língua, para tentar não gritar, mas a agonia enterrou-lhe os dentes bem fundo.
Não tardou que a boca se lhe enchesse de sangue, que engoliu. Imbert empurrou o
banco para longe e o corpo de De Molay ficou suspenso apenas pelos ossos dos
pulsos, em especial pelo direito, uma vez que o ângulo do braço esquerdo
esticava o outro até ao máximo. Algo se desconjuntou no ombro e a dor
toldou-lhe o cérebro. Um dos guardas agarrou-lhe o pé direito e observou-o com
atenção. Pelos vistos, Imbert havia tomado o cuidado de escolher os pontos de inserção,
zonas pouco irrigadas por veias. O pé esquerdo foi então colocado atrás do
direito e ambos pregados à porta com um único prego. A dor era atroz. O
inquisidor inspecionou o trabalho. Pouco sangue. Excelente. Recuou uns quantos
passos. Tal como Jesus Cristo sofreu, também vós ireis sofrer. Mas com uma
diferença. De Molay entendia agora por que motivo haviam escolhido uma porta. Imbert
abriu-a lentamente e depois fechou-a com violência. O corpo do prisioneiro foi
atirado para um lado e depois para o outro, oscilando pelas articulações
deslocadas dos ombros e a girar em torno dos pregos. Era um tipo de dor que nem
sequer sonhara que podia existir. Tal como a roda, explicou Imbert, na qual a
dor pode ser infligida por fases. Aqui existe também um elemento de controlo. Posso
deixar-vos pendurado, posso balançar-vos para a frente e para trás ou posso fazer
o que acabais de experimentar, que é o mais doloroso. O mundo em seu redor
aparecia e desaparecia e mal conseguia respirar. Os músculos contraíam-se com
cãibras e o coração batia descontrolado. Todo o seu corpo escorria suor e
queimava como se tivesse febre. Continuais a troçar da Inquisição (maldita)?, perguntou
Imbert.
O
seu desejo era dizer-lhe que odiava a Igreja pelas suas acções. Um papa fraco
controlado por um monarca francês corrupto conseguira derrubar a maior
organização religiosa que a humanidade alguma vez conhecera. Quinze mil irmãos
espalhados pela Europa. Nove mil propriedades. Um pequeno grupo de cavaleiros
que em tempos dominara a Terra Santa e se expandira depois ao longo de duzentos
anos. A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão era o
epítome da bondade. Todavia, o sucesso gerara invejas e ele, como grão-mestre,
deveria ter avaliado melhor as agitações políticas que proliferavam em seu
redor. Deveria ter sido menos rígido, mais tolerante e não tão contestatário. Graças
a Deus que antecipara alguns dos acontecimentos que entretanto haviam ocorrido
e tomara precauções. Filipe IV nunca veria sequer um grama do ouro e da prata
dos templários. E jamais veria o maior tesouro de todos. De Molay reuniu o que
lhe restava das forças e levantou a cabeça. Imbert pensou que este iria falar e
aproximou-se. Maldito sejais, murmurou, vós e todos aqueles que vos auxiliam nesta
causa demoníaca. Voltou a deixar cair a cabeça contra o peito. Escutou Imbert
gritar para que a porta fosse balançada, mas a dor era de tal modo intensa e
debilitante para o cérebro que pouco ou nada sentia.
Estavam
a descê-lo da porta. Não se recordava de quanto tempo estivera pendurado, porém
o relaxar dos membros não lhe causava qualquer alívio, pois estes há muito que
tinham ficado dormentes. Foi levado de volta à cela. Os guardas deitaram-no no
colchão e o corpo afundou-se-lhe na palha macia, ao mesmo tempo que um odor
familiar lhe chegava ao nariz. Ergueram-lhe a cabeça sobre uma almofada e
estenderam-lhe os braços para cada lado. Contaram-me, disse Imbert calmamente,
que quando um novo irmão é admitido na vossa Ordem lhe colocais um pano de
linho sobre os ombros. Um gesto que simboliza a morte e depois a ressurreição
para uma nova vida como templário. Também vós ireis ter agora essa honra. Coloquei
aos vossos pés a mortalha que guardais no interior da arca. Imbert debruçou-se
e esticou o pano sobre os pés do grão-mestre e depois ao longo do corpo húmido.
A sua visão era agora filtrada pelo pano. Sei também que este tecido foi
utilizado pela Ordem na Terra Santa, e depois trazido para aqui e colocado em
torno de cada iniciado. Haveis renascido, troçou o inquisidor. Aproveitai para
pensar nos vossos pecados. Voltarei mais tarde. De Molay estava demasiado fraco
para responder. Sabia que Imbert deveria ter recebido ordens para não o matar,
porém também sabia que ninguém iria cuidar dos seus ferimentos. Assim sendo,
deixou-se ficar deitado e quieto. A dormência começava a desaparecer,
substituída por uma agonia intensa. O coração batia-lhe forte e descontrolado,
e suava profusamente. Precisava acalmar-se e pensar em coisas mais agradáveis.
Um pensamento que não o abandonava era aquilo que ele sabia que os seus captores
desejavam acima de tudo. Era o único homem vivo a possuir esse conhecimento. Era
uma das regras da Ordem. Um grão-mestre passava o conhecimento ao mestre
seguinte para que apenas esse fosse o seu detentor. Infelizmente, devido ao seu
súbito encarceramento e à expulsão da Ordem, desta vez essa transmissão teria de
ser feita de outra maneira. Não permitiria que Filipe ou a Igreja tivessem
sucesso nos seus intentos. Saberiam apenas aquilo que ele desejasse. O que
dizia o salmo? A tua língua é como navalha afiada, ó fabricante de enganos. Nesse
momento recordou-se ainda de outra passagem bíblica, uma que trazia algum
refrigério à sua alma atormentada. Deitado naquela cama e envolto na mortalha,
o corpo a expelir suor e sangue, pensou no Deuteronómio. Deixa-me
destruí-lo, quero apagar o seu nome debaixo do céu». In Steve Berry, O Legado dos
Templários, 2006, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-808-9.
Cortesia
PdomQuixote/JDACT