terça-feira, 9 de agosto de 2016

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Quando cheguei, a maior parte dos professores já estava reunida de copo na mão na Sala de Convívio dos Docentes. Como eu tinha corrido para passar no clube de esgrima, não tivera tempo de tomar banho…»

jdact e wikipedia

«(…) Apesar da minha apreensão, fui vencida por uma pontinha de curiosidade. Quem sabe possamos nos encontrar amanhã?, propus. Para um café rápido? Ludwig olhou para alguns passantes encolhidos de frio e chegou mais perto. Amanhã a senhora e eu vamos estar a caminho de Amsterdão, falou, baixando a voz para um sussurro íntimo e, ao ver minha expressão de espanto, ainda sorriu e continuou: de primeira classe. Ah, claro!, falei, já saindo de baixo do guarda-chuva e começando a descer a Magpie Lane. Tenha um bom dia... Espere! Ele me seguiu pela ruela e me alcançou sem dificuldade, apesar do calçamento irregular. Estou falando sobre uma descoberta que vai reescrever a história. É uma escavação novinha em folha, ultrassecreta, e adivinhe só: queremos que a senhora dê uma olhada. Diminuí o passo. Por que eu? Não sou arqueóloga, sou filóloga. Como o senhor deve saber, a filologia não tem a ver com escavar, mas consiste em ler e decifrar... Justamente! Ludwig enfiou as mãos nos mesmos bolsos onde não encontrara seu cartão de visita, mas dessa vez pegou uma fotografia amassada. O que precisamos é de alguém que consiga decifrar isto aqui. Mesmo na penumbra da Magpie Lane, pude ver que a foto era de uma inscrição em algo que parecia uma parede antiga de gesso. Onde essa foto foi tirada? Isso eu não posso dizer. Só depois que a senhora aceitar o convite, disse e, aproximando-se, baixou a voz até um tom conspiratório. Encontramos provas de que as amazonas existiram mesmo, entendeu? Fiquei tão surpresa que quase caí na gargalhada. O senhor não pode estar falando sério... Ludwig se empertigou. Perdoe-me, mas estou falando muito sério, garantiu ele e, com guarda-chuva e tudo, abriu os braços como se tentasse demonstrar a gravidade da questão. Essa é a sua especialidade. A sua paixão. Ou não? É, sim, mas... Olhei para a fotografia, fascinada. A cada seis meses, mais ou menos, topava com um artigo de algum arqueólogo que alegava ter encontrado um verdadeiro túmulo de amazona ou até mesmo a lendária cidade só de mulheres chamada Temiscira. Esses artigos eram invariavelmente intitulados Nova Descoberta Prova que as Amazonas Existiram, e eu sempre os lia do início ao fim com grande afã, mas acabava decepcionada. Sim, mais um duro na queda havia passado a vida inteira vasculhando a região do mar Negro e enfrentado as intempéries com sua parca de capuz em busca de mulheres enterradas junto com armas e cavalos. E, sim, de vez em quando essa pessoa encontrava indícios de alguma tribo pré-histórica que não impedia as mulheres de montar e portar armas. Apesar disso, alegar que elas vivessem em uma sociedade amazona sem homens que às vezes enfrentava os gregos antigos em batalhas espectaculares..., bom, era mais ou menos como encontrar uma ossada de dinossauro e deduzir que os dragões cuspidores de fogo dos contos de fadas tinham mesmo existido. Ludwig me encarou com seus olhos de coruja. A senhora quer mesmo que eu acredite que depois de passar..., o que..., nove anos pesquisando as amazonas, não existe sequer uma ínfima parte de Diana Morgan que deseje provar que elas realmente existiram? Ele meneou a cabeça para a foto que havia me mostrado. Isso que está nas suas mãos é um alfabeto amazónico ainda não decifrado, e entenda o seguinte: nós estamos dando à senhora a oportunidade de ser a primeira especialista a tentar. Além do mais, estamos dispostos a recompensar seu esforço com uma generosa remuneração. Cinco mil dólares por uma semana de trabalho... Só um instantinho, falei, sentindo os dentes baterem por causa do frio e do nervosismo causado por aquilo tudo. O que os faz ter tanta certeza de que esta inscrição tem algo a ver com as amazonas? Acenei com a fotografia na sua frente. O senhor acabou de me dizer que ela ainda não foi decifrada... Arrá! Ludwig apontou o dedo para o meu nariz e quase o tocou. É justamente esse tipo de sagacidade que estamos procurando. Pegue... Levando a mão a um bolso interno, ele me estendeu um envelope. É a sua passagem. Decolamos de Gatwick amanhã à tarde. Nós nos vemos no portão de embarque. E pronto. Sem sequer esperar a minha reacção, Ludwig simplesmente virou as costas e foi embora, desaparecendo na movimentação da High Street sem olhar para trás.

Quando cheguei, a maior parte dos professores já estava reunida de copo na mão na Sala de Convívio dos Docentes. Como eu tinha corrido para passar no clube de esgrima, não tivera tempo de tomar banho e, quando entrei no recinto, escutei alguns comentários em voz baixa sobre a Miss América ter se atrasado outra vez para o jantar, mas apenas sorri e fingi não ouvir. Até onde eles sabiam, eu poderia muito bem ter estado na biblioteca, me matando para destrinchar algum manuscrito antigo em um canto empoeirado, desculpa perfeitamente válida para aparecer, como eles próprios viviam fazendo, na hora errada, no lugar errado, com cara de quem acabou de aterrar directo do Renascimento. Infelizmente, nada me levava a crer que meu apelido de Miss América fosse um elogio. Embora eu de facto fosse uns 10 centímetros mais alta que a maioria das pessoas ali e, além disso, tivesse uma aparência angelical (que, sempre que eu soltava meus cachos louros, meu pai dizia ser só fachada), o apelido quase com certeza era uma referência ao meu berço, ou melhor, ao que eles consideravam minha falta de berço. Ao que tudo indicava, eu jamais conseguiria me livrar do facto de o vocabulário de minha mãe, que era norte-americana, ter sido tão presente em casa na minha infância. Embora meu pai fosse um perfeito britânico e eu tivesse crescido rodeada por eles, havia horas em que as expressões dos Estados Unidos me ocorriam com mais naturalidade. Pelo visto, alguns dos docentes mais velhos já tinham me escutado assassinar a língua de Shakespeare, ou talvez até me visto passar correndo em frente a algum prédio da faculdade sem outro motivo que não o desejo um tanto vulgar de manter a forma, e logo concluíram ser desnecessária qualquer investigação mais a fundo sobre minha personalidade. Diana!, chamou Katherine Kent, minha supervisora, com um aceno impaciente. Como foi a apresentação?» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-453-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT