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1543.
Londres
«(…)
Huicke entra no quarto. Tem vindo todos os dias esta semana. Latymer se pergunta
por que o rei manda um de seus próprios médicos cuidar de um lorde desgraçado
do norte como ele. Katherine acha que é um sinal de que foi mesmo perdoado. Mas
não faz sentido, e ele conhece o rei o suficiente para suspeitar que haja
segundas intenções no gesto, embora não tenha certeza de quais sejam. O médico
é uma sombra preta esguia aproximando-se da cama. Meg se retira com outro
beijo. Huicke afasta as cobertas, fazendo escapar um fedor rançoso, e começa a
apalpar o caroço com dedos de borboleta. Latymer detesta aquelas mãos infantis.
Nunca viu Huicke tirar as luvas, que são macias e aveludadas como pele humana.
Usa por cima delas um anel incrustado com uma granada do tamanho de um olho.
Latymer odeia o homem por causa das luvas, a fraude delas passando-se por mãos,
e o modo como o fazem se sentir impuro. Repentes de dor aguda o consomem,
tornando sua respiração rápida e superficial. Huicke fareja um frasco de alguma
coisa, sua urina, supõe, erguendo-o contra a luz enquanto conversa em voz baixa
com Katherine. Ela se anima com a companhia do jovem médico. Pelo menos ele é
tolo e efeminado demais para ser uma ameaça, mas Latymer odeia-o com força por
sua juventude e sua esperança, não só por suas mãos enluvadas. Deve ser
brilhante para estar a serviço do rei ainda tão jovem. O futuro de Huicke está
diante dele como um banquete, enquanto o seu está esgotado. Latymer devaneia,
vozes sussurradas o preenchem.
Dei-lhe
uma coisa nova para a dor, ela diz. Casca de salgueiro-branco e agripalma. A senhora
tem o toque de um médico, Huicke responde. Eu não teria pensado em usá-las
juntas. Eu me interesso por ervas. Tenho minha própria horta medicinal… Ela pára.
Gosto de ver coisas crescerem. E tenho o livro de Bankes. Herbário de Bankes,
é o melhor de todos. Bem, eu acho, mas é bastante desprezado pelos académicos. Imagino
que considerem um livro para mulheres. É verdade, diz ele. E é precisamente
isso que o torna interessante para mim. Em minha opinião, as mulheres sabem
mais sobre cura que todos os acadêmicos em Oxford e Cambridge juntos, mas
geralmente guardo isso para mim. Latymer sente uma dor súbita atravessá-lo,
mais aguda desta vez, dobrando-o ao meio. Ouve um grito e mal reconhece como
seu. Está morrendo de culpa. O espasmo torna-se afinal uma dor persistente.
Huicke se foi e ele supõe que estivera dormindo. É acometido então de um
repentino senso de urgência. Precisa pedir a ela antes que a voz o abandone,
mas como dizê-lo? Segura o punho de Katherine, surpreso com sua própria força,
e ordena: dê-me mais tintura. Não posso, John, ela responde. Já lhe dei o
máximo possível. Mais poderia… As palavras ficam suspensas. Ele a agarra com
mais força, grunhindo. É o que quero, Kit. Ela olha para ele, directamente, sem
dizer nada.
Ele
pensa poder ver seus pensamentos como as engrenagens de um relógio,
perguntando-se, ele imagina, onde na Bíblia encontrar justificativa para aquilo;
como reconciliar sua alma com tal acto; aquilo poderia levá-la à prisão; fosse
ele um faisão atacado por um cão, não haveria problema em torcer seu pescoço
por piedade. O que você está me pedindo condenará nós dois, ela sussurra. Eu
sei, ele responde.
Palácio
de Whitehall. Londres. Março de 1543
Uma
neve tardia caiu e as torres cobertas de branco do Palácio de Whitehall
desaparecem contra o céu. O pátio está forrado de neve suja semiderretida até a
altura dos calcanhares e, apesar da serragem que foi espalhada, formando um caminho
improvisado sobre as pedras, Katherine sente o frio húmido encharcar os
sapatos, a barra molhada de suas saias batendo gelada nos tornozelos. Ela está
tiritando; joga a capa espessa em volta do corpo enquanto o ajudante da cavalariça
ajuda Meg a descer. Aqui estamos, diz alegremente, estendendo a mão para Meg,
embora alegria seja a última coisa que sinta. O rosto de sua enteada está
vermelho. A cor realça seus olhos castanhos, dando-lhes uma aparência fresca e
límpida. Ela tem o olhar doce e ligeiramente assustado de um animal silvestre,
mas Katherine consegue perceber o esforço que faz para segurar mais lágrimas.
Reagiu mal à morte do pai. Venha, diz Katherine, vamos para dentro. Dois ajudantes
tiram as selas dos cavalos e escovam-nos energicamente com punhados de palha,
trocando gracejos. O cavalo cinza de Katherine, Pewter, mexe a cabeça, fazendo
tilintar o arreio, e relincha, lançando nuvens de vapor no ar como um dragão. Calma,
garoto, diz Katherine, que segura a rédea e acaricia o focinho aveludado,
deixando-o fungar em seu pescoço. Ele precisa beber alguma coisa, diz ao ajudante,
entregando-lhe as rédeas. Seu nome é Rafe, não é? Sim, senhora, ele responde. Lembro-me
de Pewter. Fiz uma compressa nele uma vez. Seu rosto fica vermelho de vergonha.
Sim, ele estava mancando. Você fez um óptimo trabalho. O rosto do rapaz se abre
em um sorriso. Obrigado, senhora. Sou eu quem deveria agradecer, diz ela,
enquanto Rafe leva Pewter para o estábulo. Ela segura a mão da enteada e
dirige-se à porta principal. Está entorpecida de tristeza há semanas e
preferiria não ter que ir à corte tão pouco tempo depois da morte do marido,
mas foi convocada, Meg também, e uma ordem vinda da filha do rei não é algo que
se possa recusar. Além disso, Katherine gosta de Lady Mary, conheceram-se
quando crianças, até tiveram o mesmo tutor quando a mãe de Katherine servia a mãe
de Mary, a rainha Catherine de Aragón, antes de o rei mandá-la embora. As
coisas eram mais simples naquela época, antes do cisma, quando tudo ficou de
ponta-cabeça, o país fendido em dois. Mas não vão ordenar que fique na corte
ainda. Mary respeitará seu período de luto». In Elizabeth Fremantle,
Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.
Cortesia de
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